São 10 da manhã de terça. Acabei de levantar e estou tomando café e lendo as notícias no laptop. O que ando sentindo nesses últimos dias, por conta de uma série de acontecimentos, é um misto de melancolia com alívio (inverno, inferno astral com relacionamentos, doenças e por aí vai!). Mas eis que topo com um texto de Arnaldo Jabor que me deixa no mínimo puto. Antes de me focar nessa figura, uma história. Lembro que quando lecionava numa universidade privada em São Paulo, uma vez me vi numa aula tentando explicar a meus alunos a utilidade da filosofia nos dias atuais e qual era o ofício de um filósofo. E lá estava eu discorrendo sobre o mito da caverna de Platão e tentando explicar as digressões sobre o amor em O Banquete. Meus/Minhas alun@s não davam a mínima, obviamente. Afinal, pra que cargas d'água um administrador precisaria ler Platão, ou Rousseau, ou Descartes, ou Sartre? Catatões chatos, sem sentido e cheios de palavras indecifráveis! Mas insisti com os jovens universitários e busquei retratar como o texto filosófico nos ajuda a obter diferentes perspectivas de uma problemática, análises fundamentadas do ponto de vista moral, estético, histórico e político. Enfim, o texto filosófico nos levaria a transpor o conhecimento espontâneo e acrítico do senso comum. Nessa altura, eis que um aluno ergue a mão pedindo a palavra: "Professor, o texto filosófico é algo como as coisas que essa cara Arnaldo Jabor escreve no jornal, né?" Ai ai...
Pois bem, estava eu a ler um desses textos "que esse cara Arnaldo Jabor escreve no jornal" em que o cineasta discorre sobre fenômeno do Facebook (leia AQUI) e eis que topo com uma pérola: "Ferido por esta dor, fui no dia seguinte à exposição de Jean-Michel Basquiat, no Museu de Arte Moderna. Eu, que desconfiava da genialidade do neguinho, tive uma revelação: ali estava retratado o sentimento do mundo atual, o impacto da dor de um "excluído", pela casual união entre o mais miserável e o mais profundo: filho de haitiano, homeless, pele preta, drogado, mas com um talento "picassiano"." Sinto muito, mas minha sensibilidade (que anda por um fio!) foi para o bebeléu. Cada dia que passa, tenho menos paciência para esses pseudo-intelectuais como Jabor que pagam de descolados escrevendo besteiras e travestindo o seu preconceito de cor/classe com palavras e textos que não levam a nenhum lugar. A passagem acima demonstra a total ignorância de Jabor em relação as pessoas sobre as quais escreve ou falta de compromisso em simplesmente obter mais informações sobre o que está escrevendo nem que seja pesquisando no Wikipedia. Basta uma leitura rápida no meu post sobre um recente documentário sobre Basquiat lançado ano passado (leia AQUI) para se tocar de que a descrição fornecida por Jabor é uma meia verdade. Basquiat nunca foi pobre, sua família era de classe média (o pai era contador), o ambiente familiar era trilingue (além do inglês o pai haitiano falava francês e a mãe porto-riquenha dominava o espanhol) e o pintor decidiu morar nas ruas por opção quando tinha apenas 17 anos. A formação do artista, que nunca freqüentou escolas de arte, foi autodidata já que a mãe o levava a museus desde da tenra de três anos. Mais, Jabor enquadra o talento de Basquiat como algo espetacular, caído do céu de modo que o artista seria apenas um sortudo. Pois bem, já fiz uma discussão aqui sobre como genialidade não é algo que é trazida nos genes ou é um dom divino, mas sim algo produzido socialmente. Basta ler o texto clássico de Norbert Elias, Mozart: Sociologia de um Gênio (1994), para entender do que falo. Por fim, Jabor se refere a Basquiat como "neguinho" diminuindo o valor do artista de uma forma que pode ser caracterizada como no mínimo preconceituosa.
Mas é isso aí. Essa é a maneira com o racismo brasileiro, entendido erroneamente como "cordial", funciona. Nosso racismo se manifesta no âmbito do privado, entre portas fechadas, nos comentários de canto de boca, nas piadas e textos relativamente leves que visam informar e entreter como o de Jabor. Outro mestre desse método é o jornalista, produtor musical e escritor Nelson Motta (foto acima). Ano passado fiz uma resenha do livro que o mesmo escreveu sobre o cantor Tim Maia (leia AQUI) onde a intimidade é usada de forma desrespeitosa através de termos como "crioulo" e "preto" além do paternalismo transbordante da primeira até a última página. Tim Maia, que era inteligente, sacado e visionário, acaba sendo lido apenas a partir dos estereótipos históricos que lhe são atribuídos: beberão, cheirador, irresponsável e porra louca.
Infelizmente, são essas pessoas que ocupam espaços importantes nos meios de comunicação de massa existentes no Brasil. Nossa mídia é ainda elitista, branca e majoritariamente masculina e heterossexual. Tempos atrás resolvi fazer um post sobre os blogs patrocinados por jornais como Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo. Olhando dezenas de blogs individualmente, não encontrei um sequer escrito por um/a patríci@ de cor. Mas daí eu pergunto: como damos conta de diferentes visões de mundo, gostos, estéticas e estilos que compõem nosso país quando a imprensa é tão homogênea do ponto de vista de classe, gênero, raça e origem geográfica? Brasil Brasil, mostra a sua cara. E Jabor, pare de escrever MERDA! Em tempo, respondi a meu aluno que o texto do cineasta não era filosófico, mas talvez escatológico. Obviamente que o jovem futuro administrador não entendeu a piada.
Muita Paz!
* Post escrito ouvindo Luiz Melodia, álbum Pérola Negra (1973). Ouça AQUI