Minha geração, que já passou a casa dos trinta, cresceu ouvindo hip-hop. Meus ídolos na adolescência foram Public Enemy, Thaíde e DJ Hum e Racionais MCs. Dia desses ao ouvir raps de décadas passadas algo que me veio à cabeça foi a pergunta: por que rappers não rimam mais sobre relações amorosas? De tempos pra cá só é possível ver nossos trovadores urbanos declarando seu amor as suas mães. Mas e as outras mulheres? Sim, há outras mulheres nas canções, mas elas sempre ocupam um lugar negativado: traiçoeiras, interesseiras, depravadas e promíscuas. Resumindo: ou elas são as digníssimas mães (próximas de santas) ou são a personificação de prostitutas cujo objetivo é levar vantagem sobre homens ingênuos. A pergunta que não quer calar é: o que aconteceu com o amor romântico no hip-hop? Onde estão as mulheres que não se enquadram nos estereótipos de progenitora ou meretriz nas letras das canções? Tentarei responder essas questões ao final desse longo post.
Minha tese central é de que o hip-hop nunca esteve à vontade para falar de amor devido a dois motivos. O primeiro diz respeito a uma compartimentalização da música negra norte-americana no que diz respeito a tópicos. Relações amorosas sempre foi uma tema restrito ao soul, rhythm and blues e derivados contemporâneos como o neo-soul. Marvin Gaye, Barry White, Al Green eram e ainda são os grandes galãs e fazedores de ritmos que marcavam as baladinhas em que os pares dos casais dançavam coladinhos um ao outro. Por outro lado, o hip-hop ou a sua música, o rap, focavam como tópicos de suas letras temas mais diversos como festas, relatos cotidianos, brigas e disputas. Além disso, o imaginário construído em torno da figura do rapper o apresentava como uma espécie de tough guy (rapaz durão), o tipo de identidade masculina mais comum nas classes trabalhadores (meio no qual o hip-hop surgiu). Assim sendo, um homem falar em amor no contexto desse imaginário era entendido como demonstração de fraqueza e feminilidade. Sumarizando, Teddy Pendergrass sempre esteve autorizado a falar de amor, algo que não seria aceito tão facilmente vindo da parte de um Grandmaster Flash, já que isso afetaria sua credibilidade como rapper.
Well, podemos complicar a história, obviamente. A golden era do hip-hop (1986-1993) registra várias canções em que rappers falam abertamente de sentimentos. Lembro que nos idos dos anos 1990 presenteei uma paquera minha com um álbum de LL Cool J em que uma das músicas falava justamente da necessidade de amor. I Need Love (1987) pode ser considerada o primeiro rap balada e fez grande sucesso numa época em que diferentes estilos de rap ainda não estavam tão bem estabelecidos. Assista o vídeo de LL Cool J logo abaixo e confira...
O sucesso da canção de LL Cool J deixou rappers mais à vontade para explorar esse terreno e outras coisas interessantes surgiram. Um som que não me sai da cabeça é Minha Mina (ouça AQUI) música que consta do primeiro álbum de Thaide e DJ Hum intitulado Preste Atenção lançado em 1989. Thaide rima as qualidades de sua amada e a atração que sente por ela em cima de um quase break beat que no refrão é combinado ao sample de For The Love of You (ouça AQUI) um clássico de 1975 do The Isley Brothers e sucesso certo em qualquer baile nostalgia de São Paulo (beijei muita preta dançando esse som!). Ainda nesse disco do grupo de rap paulistano havia a canção Coisas do Amor (ouça AQUI), uma balada no melhor estilo black falando de separação e de um amor perdido cujo sample para a base foi retirado da canção do grupo Tavares, Never Had a Love Like This Before (ouça AQUI) de 1979.
Na gringa em 1989 o grupo De La Soul lançou seu álbum 3 Feet High and Rising que continha a canção "Eye Know." A letra é um cortejo em que o rapper tenta convencer sua paquera que as qualidades dele são melhores que de seus concorrentes. As referências a sexo são tímidas e passageiras. O refrão confirma isso quando ele diz que "eye know eye love you better" (eu sei que eu a amarei melhor). Esse mesmo esquema foi seguido no ano seguindo pelo grupo A Tribe Called Quest numa canção que se tornaria clássica no universo do hip-hop:"Bonita Applebum". Constando como uma faixa do álbum de estréia do grupo intitulado People's Instinctive Travels and the Paths of Rhythm, a canção é um flerte no qual os rappers do A Tribe... tentam impressionar uma suposta garota, Bonita, com o refrão "Bonita Applebum you got put me on." O sample usado na produção da faixa foi retirado da canção "Memory Band" (1967) do grupo Rotary Connection (ouça AQUI). Tanto a canção como o vídeo são leves, sem referências sexuais e lembram uma turma de adolescentes descobrindo as delícias da paquera e do amor através de flertes e festinhas. Há rumores de que a garota referida na música era amiga de Q-Tip no colégio onde ele e seus amigos estudavam. As batidas do grupo, sempre produzidas com samples de jazz e soul, dão uma noção de como era a sonoridade do hip-hop mais alternativo produzido em NYC nessa época e que tinha representantes nomes como Gangstar e Digable Planets. Assista o vídeo do A Tribe logo abaixo:
Mas estávamos nos anos 1990. Muita coisa acontecia e uma delas era a chegada de fato do gangsta rap ao mainstream com o sucesso das carreiras de rappers da costa oeste norte-americana, leia-se Los Angeles: Ice-T, N.W.A (Niggers With Attitude), C.M.W. (Compton Most Wanted), Too Short dentre outros tinham uma maneira bastante peculiar de referir as mulheres. O gangsta rap era entendido como uma espécie de hardcore rap incorporando temas como violência policial, drogas, o cotidiano e as disputas entre gangues. Termos como bitch, ho, slut, goldigger, chicken head passaram a ser formas comuns de se referir a mulheres nas letras de raps que sempre eram associadas a prostitutas, interesseiras e vistas exclusivamente como objetos de prazer sexual. Em 1990 o grupo paulistano Racionais MCs lançou seu primeiro álbum intitulado Holocausto Urbano no qual a canção "Mulheres Vulgares" (ouça AQUI) já ressoava a influência e atitude gangsta (no fundo nada mais do que machismo aberto e declarado) em relação as mulheres. Nessa faixa Mano Brown (à época apenas "Brown") e Edy Rock simulam uma conversa de telefone onde conversam a respeito de mulheres, o refrão é claro "mulheres vulgares, uma noite e nada mais." Assim sendo, o amor desaparece. As únicas mulheres retratadas são aquelas moralmente equivocadas devido a sua profissão (prostitutas) ou ainda outras que não são necessariamente prostitutas mas que agem como tal dormindo com vários homens e interessadas no que eles podem lhe oferecer em termos materiais.
Um outro fato que deve ser lembrado e é notado por alguns intelectuais que tem escrito sobre hip-hop nos EUA como Cornel West (leia Questão de Raça [1994]), Paul Gilroy (leia Entre Campos [2007]), e Tricia Rose (leia Hip-Hop Wars [2008]) é que o gangsta rap incluía em sua fórmula de se fazer rap o machismo, misoginia e sexualização de corpos femininos e negr@s que permeiam toda a sociedade americana, mas que permaneciam até aquele momento numa espécie de subterrâneo ou eram um "assunto tabu" para usar uma expressão de West. Retratar mulheres como prostitutas, interesseiras ou hiper sexualizadas deixava rappers à vontade para lidar com temas que envolviam relações de gênero, uma vez que essas representações se encaixam perfeitamente à identidade masculina prevalecente entre jovens negros e latinos, pobres, da classe trabalhadora e vivendo em áreas urbanas deterioradas, as inner-cities. Mais: a mercantilização desse tipo de rap também tinha como público ávido uma classe média branca fascinada com corpos negros e histórias de violência. O processo de sexualização da música negra não se restringiu ao rap. O dancehall e o rhythm and blues também foram ritmos que incorporaram de forma crescente essa tendência. Como mostra Paul Gilroy artistas como Jodeci, R. Kelly (foto abaixo), Lady Saw, Super Cat dentre outros deram suas contribuições a essa tendência ao dois ritmos citados anteriormente e que tiveram como ancestrais o reggae, no caso do dancehall, e o soul, no que diz respeito ao rhythm and blues.
Mas nem tudo estava perdido. Em 1991 o grupo inglês PM Dawn lançou o seu primeiro álbum Of the Heart, of The Soul and of the Cross: The Utopian Experience emplacando a faixa "Set Adrift on Memory Bliss." Essa garotada realmente representava um estilo diferente no universo do hip-hop uma vez que o visual dos irmãos Attrel e Jarret Cordes não se enquadrava em nada do que se via nos EUA à época. Nem batas afrocêntricas nem uniformes de presídios ou calças baggy, mas sim um vestimenta que poderia ser classificada como neo-hippie. Novamente a letra da canção descreve um encontro e cortejo cujo refrão deixa claro a primeira impressão deixada pela garota: "benzinho, você me joga num barco de felicidades atracado na memória." A música se enquadrava bem ao estilo dessa rapaziada: calma e estilosa, perfeita com o sample da canção True (1983), do grupo Spandau Ballet (ouça AQUI). Assista ao vídeo do PM Dawn logo abaixo...
Para não deixar nosso país de fora, vale a pena lembrar que em 1992 a dupla Thaide e DJ Hum (foto abaixo) lançou o disco Humildade e Coragem São As Nossas Armas Para Lutar que continha a balada "A Noite." A canção não é necessariamente uma balada romântica, mas se enquadra perfeitamente na forma que rappers falam de sentimentos, ou seja, comendo pelas beiradas. A letra de Thaide é, de certa forma, uma declaração de amor a noite com suas belezas e perigos (ouça AQUI)
Em 1992 Apache, rapper de New York City falecido ano passado, fazia sua declaração de amor em "Gangsta Bitch", canção que iria compor seu álbum solo, Apache Ain't Shit, lançado no ano seguinte. Ou seja, de acordo com ele, para um truta gangsta nada melhor do que uma garota tão durona quanto ele próprio. A letra é clara: "I need a gangsta bitch... Puffin on a blunt, sippin on a Heineken... Give a ghetto girl, kick this Soul Train hoe..." (Eu preciso de uma puta gangsta... Puxando um baseado, tomando uma Heineken... Dê-me uma mina do gueto, dê um pé na bunda dessa vagaba Soul Train). Well well, esse era o estilo gangsta de falar de amor. Veja o vídeo aí...
Em 1993 o rapper Big Daddy Kane fez um dueto com Spinderella na canção Very Special (ouça AQUI) no que era uma das faixas do álbum Looks Like a Job For... Novamente a fórmula do encontro da mulher perfeita, cortejo e xaveco em cima de rimas. No entanto, Big Daddy se diferencia uma vez suas rimas são bem superiores em relação as letras de outros rappers. Ele consegue realizar uma cantada sem cair em frases açucaradas, mas sim se utilizando de ironia e referências a outros cantores. É possível notar isso quando ele diz "Cuz I fell straight into your trap/And since they say love is blind/I'm the Ray Charles of rap" (Porque eu me sinto preso na sua armadilha/E uma vez que dizem que o amor é cego/Eu sou o Ray Charles do rap)...
Nesse mesmo ano, Los Angeles dava provas de que mesmo sendo a capital do gangsta rap ainda havia grupos e canções que não se enquadravam totalmente nesse estilo. A canção "Passin' Me By" consta como uma das faixas do álbum Bizarre Ride II The Pharcyde do grupo Pharcyde e descreve a história de um garoto e sua paixão platônica por sua bela professora cujo marido é um bandido. Mesmo após ele crescer, ela continua apenas "passando por ele" em sua vida, o que confirma o aspecto central desse tipo de amor: a impossibilidade dele se realizar. Na minha opinião, o videoclipe dessa canção é um dos mais belos feitos na história do hip-hop: é sexy sem chegar a vulgaridade. Assista aí e dê sua opinião...
The Pharcyde - Passin Me By from john E Njoki on Vimeo.
Ainda continuamos em 1993. "Lots of Lovin" é outra de minhas canções preferidas. Pete Rock e CL Smooth lançaram nesse ano o álbum Mecca and The Soul Brother que continha essa música como uma das faixas. Yeah, finalmente uma declaração de amor em que CL Smooth rima retratando o cotidiano de um casal e fazendo juras de amor a sua amada. O vídeo também é legalzinho, vê aí:
Para terminar aquele ano ainda teríamos na gringa um outro lançamento de peso com nada menos do que 2Pac (aquela época ele escrevia assim seu nome artístico) pondo na rua seu segundo álbum intitulado Strictly 4 My N.I.G.G.A.Z. e contendo uma faixa que se tornou clássica, "Keep Ya Head Up." A canção, produzida em cima de um sample da maravilhosa "Be Alright" dos irmãos Zapp & Roger (ouça AQUI), não falava de amor propriamente, mas era uma espécie de mensagem aberta as mães solteiras dependentes do welfare afirmando que elas não deveriam se render as dificuldades e "manter a cabeça erguida" ao criar seus filhos com ou sem a ajuda dos pais. 2Pac ou Tupac é realmente cativante nessa canção. Em determinada altura ele se pergunta: "I wonder why we take from our women/Why we rape our women, do we hate our women?/I think it's time to kill for our women/Time to heal our women, be real to our women" (Eu me pergunto por que nós desvalorizamos nossas mulheres/Por que nós estupramos nossas mulheres, nós odiamos nossas mulheres?/Eu acho que é hora de matar por nossas mulheres/Hora de curar nossas mulheres, sermos honestos com nossas mulheres). O rapper colocava nas rimas sua própria experiência pessoal uma vez que ele também havia sido criado por uma mãe solteira. Afeni Shakur era ativista dos Black Panthers Party e soube que estava grávida de Tupac quando encontrava-se presa. A ironia dessa canção é que mesmo tendo escrito essas rimas tão engajadas e belas em novembro desse mesmo ano o rapper seria preso, e posteriormente condenado, por ter, junto com dois de seus seguranças, estuprado um fã num quarto de hotel em NYC. Assista o vídeo de "Keep Ya Head Up":
Em 1994 a onda gangsta já havia dominado New York Shit. Talvez o melhor representante da versão gangsta da Big Apple tenha sido nada mais nada menos do que Notorious BIG. Nesse ano cairia nas ruas seu álbum de estréia entitulado Read to Die e que contava com a faixa "Me and My Bitch" cuja letra estabelecia a maneira thug life de falar sobre relacionamentos. A faixa tem início com Puffy Daddy a capela perguntando a uma voz feminina se ela mataria alguém por ele. Na sequencia Notorious entra rimando e relatando a história do encontrou de uma verdadeira mina que o apoiava em todas as horas, fazia sexo como ninguém assim como brigava com ele como ninguém e o ajudava nos seus planos de gangster até ser morta por seu inimigos. A canção de BIG é a clássica história de um amor bandido numa versão feminina. Ouça a canção AQUI
Outra canção desse álbum que se tornaria clássica é "Big Poppa" que descreve o lifestyle de um verdadeiro player com baladas, consumo conspícuo e uma grande lábia para ganhar dinheiro, atrair e se relacionar com várias mulheres ao mesmo tempo além do convívio com mulheres espertas que tiram proveito de homens ingênuos. O sample usado na produção dessa faixa foi retirado da canção Between the Sheets do grupo The Isley Brothers (ouça AQUI). Na minha opinião, o refrão de "Big Poppa" é um dos mais divertidos do hip-hop: "I love it when you call me Big Pop-pa/ Throw ya hands in the air, if you's a true playa/I love it when you call me Big Pop-pa / To the honnies gettin money playin fellas/niggaz like dummies uh / I love it when you call me Big Pop-pa / You got a gun up in your waist please don't shoot up the place (why) Cause I see some ladies tonight that should be havin my baby Bay-bey" (Adoro quando vocês me chamam de Big Pop-pa / Jogue suas mãos para o alto se você é um verdadeiro player/ Adoro quando vocês me chamam Big Pop-pa/ Para todas os docinhos ganhando uma grana fazendo esses trutas/pretos de trouxa uh / Eu adoro quando vocês me chamam de Big Pop-pa / Você aí que tem um cano na cintura por favor não dê uns pipocos no salão (porque?) Por que eu tô vendo umas minas essa noite que deveriam ter meu bebê). Assista o vídeo aí...
Malcolm X disse em sua auto-biografia que a prisão é um ótimo lugar para refletir sobre a própria existência, uma vez que não há muita coisa para fazer além de ler, pensar e sofrer. É uma filosofia bastante dura, mas que tem lá a sua razão se pensarmos os livros que foram escritos ou discos produzidos na cadeia. Essa é quase a história do álbum Me Against the World, terceiro disco de Tupac lançado em 1995 quando o rapper estava preso. O artista conseguiu canalizar todas as pressões que sofria durante o processo no qual foi condenado a cumprir pena por estupro nas letras das canções de Me Against... Juntando seu talento ao trabalho a ótimos produtores (como Easy Moe Bee, Tony Pizzaro, Shock G. dentre outros) Tupac criaria um álbum que ficaria clássico. O disco continha a canção "Dear Mama" uma espécie de declaração de amor e ao mesmo tempo uma reconciliação que o rapper fazia com a mãe, Afeni Shakur, devido aos anos conturbados de juventude. A canção é também paradigmática porque seu formato se tornou recorrente na forma como rappers falavam de sentimentos, ou seja, dirigindo os mesmos a progenitora ou amigos. Veja o vídeo de "Dear Mama":
A pegada "ghetto love" bastante parecido ao "Me and My Bitch" de Notorious BIG reaparece no duo feito entre o rapper Method Man e a cantora de rhythm and blues Mary J. Blige canção "I'll Be There For You/You're All I Need To Get By." A música foi produzida usando um sample e reatulizando a canção de Marvin Gaye "You're All I Need To Get By" lançada em 1968 e cantada numa parceria com a cantora Tammi Terrel (ouça AQUI ). A fotografia do vídeo de Method Man e Mary J. Blige é fenomenal. Convido tod@s a assistirem o vídeo logo abaixo (nesse link AQUI dá pra acompanhar com a letra da canção, basta clicar nessa opção no menu).
Posso estar enganado (leitore/as me ajudem!), mas foi em 1995 ou 1996 que o grupo Ataliba e a Firma lançou o álbum que continha o som "Política", carro chefe do disco intitulado com o mesmo nome do grupo. Entre as faixas havia a mais que romântica "Feminina Mulher" com a qual sei que muita gente dançou e beijou bastante nas sessões de música lenta dos bailinhos black que os DJs anunciavam de forma bem irônica: "Chegou a hora de pegar no macio!". Ouça AQUI a canção que imortalizou o refrão "Seu olhar vai na rua um brinde a madrugada/É uma simples moldura a Lua prateada."
Uma canção que vai quase na mesma linha de "Dear Mama" é "All That I Got Is You" do primeiro álbum solo de Ghostface Killah (formalmente membro do grupo Wu Tang Clan) intitulado Ironman e lançado em 1996. Killah descreve sua infância de pobreza e como sua mãe teve que se virar para criar os filhos sozinha após seu pai a deixá-la quando ele tinha apenas 6 anos de idade. Novamente a canção é uma homenagem e declaração de amor à aquela que enfrentou uma série de dificuldades em nome d@s fih@s. Assista o vídeo de Killah logo abaixo... Ah, a canção conta conta com a participação da diva Mary J. Blige (foto acima) que manda super bem no refrão...
Ghostface Killah - All That I Got Is You (feat. Mary J. Blige) from Tarik Azzougarh on Vimeo.
Algo interessante é que a mistura de elementos de rhythm and blues, reggae e soul aliado e uma vocal feminino foi uma fórmula certeira e manjada para falar de amor no meio hip-hop. Foi nos anos 1990 que essa rap se aproximou especialmente do R&B de forma consistente por meio de cantoras como Mary J. Blige (cuja voz fez parceira com vários rappers como já vimos) e Faith Evans (diga-se de passagem, ex de Notorious BIG) para ficar nos exemplos mais conhecidos. Entretanto, quem de fato sacralizou-se essa fórmula de maneira consistente foi Lauryn Hill em seu álbum de estréia de 1998 intitulado The Miseducation of Lauryn Hill emplacando o hit Doo Woop (That Thing) cujo vídeo é uma obra-prima (a letra não fala necessariamente de amor, mas vale a pena assisti-lo AQUI ) O álbum de Hill está cheio de canções românticas como "When It Hurts So Bad", "I Used To Love Him" (com a participação de Mary J. Blige), "To Zion", "Ex-Factor", "The Miseducation of Lauryn Hill", a faixa escondida "Can't Take My Eyes Off You"e "Sweetest Thing (Mahogany Mix)." Esse é um ponto interessante uma vez que The Miseducation... é um disco de uma rapper cuja produção levou a um estilo híbrido entre rap, reggae e soul ao mesmo tempo em que as letras de mais da metade das faixas falam de amor. Na verdade, essa fórmula já havia sido testada quando Hill ainda estava no grupo The Fugees através da regravação de Killing Me Softly With His Song no segundo disco do grupo, The Score (1996), canção clássica gravada por Roberta Flack em 1971, e ainda a linda e pouco conhecida The Sweetest Thing, incorporada a trilha sonora do filme Love Jones (1997). Resumindo, rappers femininas que soubessem cantar em cima de bases cuja produção misturava batidas de hip-hop com elementos melódicos de outros ritmos negros era a forma mais comercial e viável de vender canções de amor no universo hip-hop.
Foi em 1999 que Xis, ex-rapper do grupo DMN, lançou seu álbum solo Seja Como For, álbum produzido pelo DJ dos Racionais MCs, meu truta KL Jay. A música que estourou nas rádios foi a famosa "Us Mano As Mina". Entretanto, o disco ainda trazia uma faixa intitulada Só Por Você produzida em cima de um sample da canção Luther Vandross, "Don't You Know That" (ouça AQUI). Xis provou que sabia falar de amor sem deixar a malandragem de lado, grande som! Na gringa a fórmula do dueto voltaria em grande estilo com um casal que formou um verdadeiro casal romântico na vida real: Common e Erykah Badu. Na canção "The Light" o rapper faz rimas amorosas numa suposta carta endereçada a sua amada. Badu cantou o refrão numa versão remixada da canção que entrou na trilha sonora do filme Bamboozled (2000) de Spike Lee. Ouça a versão remixada AQUI da bagaça e assista logo abaixo o vídeo da versão de "The Light" que saiu no álbum Like Water for Chocolate lançado por Common em 2000!
Pois é, mas nos anos 2000 as coisas mudaram. Canções falando sobre amor romântico ficariam cada vez mais raras no universo hip-hop e seriam substituídas pelas que retratavam festas, flertes com fortes apelos sexuais e a capacidade de conquista de players. Esse estilo era na verdade uma espécie de gangsta chic que tinha mais haver com sexo sem compromisso do que amor propriamente e tão bem retratado nas canções "Girls Girls Girls" (do álbum The Blueprint, 2001) e "Excuse Me Miss" (do álbum The Blueprint 2, 2002) ambas de Jay-Z. Assista os vídeos aí logo abaixo. Snoop Dog ainda em 2003 lançaria"Beautiful" (do álbum Paid tha Cost to Be da Bo$$) que, assim como em "Excuse Me Miss" de Jigga, contava com o vocal de Pharrel e colocou de vez a cidade do Rio de Janeiro, com suas favelas, praias e mulheres no imaginário do hip-hop norte-americano como uma espécie de segundo Caribe.
E...
Well, daí em diante é história. Sexo e sexualização dos corpos negros, masculinos ou femininos, vem desde então tendo muito mais espaço na indústria fonográfica e vendem mais discos do que a temática amorosa. A crítica cultural Tricia Rose, em seu livro Hip-Hop Wars (2008), defende o argumento de que as transformações que a indústria fonográfica e as mídias de comunicação como rádio, TV passaram nas últimas duas décadas além do advento da Internet são responsáveis pela formatação de um hip-hop comercial que exploram unicamente temáticas focadas em violência, drogas e sexo. Outros estilos alternativos seriam deixados de lado ou não teriam espaço em grandes gravadores, majoritariamente controlados por empresários (e não músicos) mais preocupados com o número de discos vendidos do que propriamente com a qualidade e estilo das músicas. Esse é um argumento também defendido no documentário de Andrew Shapter intitulado Before The Music Dies (assista AQUI) e lançado em 2007. A nova audiência do hip-hop também seria um fator decisivo, uma vez que jovens e adultos jovens brancos de classe média moradores de subúrbios seriam grandes consumidores de um gênero musical que transforma em mercadoria um estilo de vida marcado pelo cotidiano muitas vezes violento e disfuncional das inner-cities (áreas centrais e deterioradas das cidades onde se localizam a maior parte dos guetos negros e latinos). Assim sendo, rappers, que já não se sentiam muito à vontade para falar de amor em suas canções, não tem mais nenhum estímulo para fazê-lo uma vez que é mais fácil falar de relacionamentos superficiais que se resumem ao sexo, festas além de sexualizar e objetificar corpos femininos. Assim sendo, só há espaço para duas representações de mulher no imginário dos rappers: aquela com a qual se faz sexo ou aquela que lhe deu a luz. Mesmo assim, há ainda exemplos de canções e músicos criativos que tentam fugir desses lugares comuns. Mano Brown escreveu e gravou recentemente (talvez não muito!) Mulher Elétrica e na gringa Q-Tip com sua já famosa elegância gravou a charmosa We Fight/We Love com a participação de Raphael Saadiq. Entretanto, minha suspeita é de que o hip-hop, mesmo que o faça poucas vezes, lida com a temática amor de uma forma muito mais complexa que outros ritmos que apenas reproduzem a fórmula do amor romântico.
Muita Paz!
PS: toda seleção é pessoal e a minha, no que diz respeito as músicas aqui listadas/comentadas, não foi diferente, caso você se lembre de uma outra canção de amor (ou com um assunto correlato) no hip-hop joga no comments e divide com nóiz! Valeu...
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
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