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Race Matters atirou West para o sucesso, mas a experiência de ler os ensaios coerentes, elegantemente bem escritos, engajados e apaixonados desse livro pouco se compara a ver essa figura, que é um misto de filósofo e teólogo, falar em público. Ano passado tive o prazer de pela primeira vez assisti-lô e trocar rápidas palavras com ele em um colóquio realizado na New York University (NYU) no qual participavam outros três intelectuais de peso: Jürgen Habermas, Judith Butler e Charles Taylor. Havia muita gente para ver Habermas e Butler, mas digo com certeza que a maior parte dos negros (eu me incluo nessa massa) estava lá interessada em ver a performance de Doctor West, maneira como o chamam por aqui (reverência que, apesar do título que todos possuem, poucos professores da área de humanas levam na vida cotidiana). Pois bem, Doctor West é um show! Fala de forma livre sem ter um texto escrito ou roteiro pré-determinado, usa toda a tradição dos pastores afro-americanos com entonações diferentes de voz, paradas estratégicas, caretas, corporalidade e piadas que levam o público ao delírio. Assista parte de uma entrevista do homem no vídeo aí embaixo. Nele West descreve um encontro que ele e sua família tiveram com o ex-presidente Ronald Reagan (1911-2004) quando esse era então governador da Califórnia, entre 1967 e 1975, e West tinha apenas 16 anos.
Feita a apresentação de West aos que nunca ouviram falar dele vamos ao que interessa. Devo dizer que prefiro biografias a autobiografias. Os dois formatos de obra sofrem sérios riscos, mas tendo a ver o segundo como mais problemático. Depois de mais uma centena de páginas lidas é quase impossível não ser arrebatado pela impressão de que o autor sofre de certo egocentrismo e que o livro não passa de um exercício radical de narcisismo. Isso ocorre não necessariamente porque os autores são de fatos narcisistas, mas devido a forma como a memória funciona. A memória é uma construção do passado a partir do presente. Isso significado que a leitura que fazemos do nosso passado é realizada de forma a dar coerência ao que somos e vivemos hoje. Assim sendo, quando reconstruímos nossa trajetória apagamos/esquecemos tudo o que havia de contraditório, problemático e que se postava como dilemas. Obviamente que determinadas biografias não podem se dar a esse luxo, uma vez que elas só nascem a partir da resolução de determinadas conflitos e rompimentos que estabelecem fins e inícios de períodos. Um grande exemplo aqui é a autobiografia de Malcolm X (1925-1965), escrita por Alex Haley (1921-1992) a partir de conversas com o líder negro. Haley usou outra estratégia que agradou o público leitor: ele construiu uma narrativa muito próxima da estrutura de um romance cujo o final todos já sabiam, ou seja, a fatídico assassinato de Malcolm. Há quatro rompimentos/fases essenciais na narrativa da vida de Malcolm: sua primeira infância marcada pela perda do pai e a desestruturação familiar; a adolescência de sucesso escolar e aspirações de ascensão social; a vida de criminoso e, por fim, a ascensão como líder religioso/político.
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David Ritz, autor de várias biografias e autobiografias, tentou criar uma narrativa agradável ao trabalhar com West nesse projeto estabelecendo rompimentos e fases distintas a vida do filósofo. Contudo, o resultado deve desagradar um público mais especializado e que conhece minimamente o trabalho do professor enquanto é sucesso garantido entre o público leigo em questões intelectuais e que conhece West de suas aparições na TV ou lectures. A tese central do livro é que West é o resultado da tradição na qual sua família está inserida: cristã/batista, classe média baixa com antepassados de classe trabalhadora e com pais dedicados aos filhos. A família de West é a personificação da respeitabilidade negra construída pela classe média e elites afro-americanas para fazer frente ao racismo desumanizador norte-americano. Essa atitude, que era interiorizada pelos negros mais aquinhonhados, consistia em valorização da ética do trabalho, dos estudos, religiosidade, cuidados com a aparência pessoal, moralidade quase vitoriana e ativismo. West, que nasceu em 1953, é fruto disso tudo, mas viveu sua adolescência e juventude nos anos 1960 e 1970 momentos de transição na sociedade americana. Os pais de West eram sofisticados intelectualmente. A mãe era professora e o pai empregado numa base áerea do governo americano. Ambos haviam cursado universidade e estavam situados num lócus mediano na estratificação social de Sacramento, cidade onde moravam no estado da Califórnia. West cresceu nesse meio em companhia do irmão mais velho Cliff e duas irmãs mais novas. Logo depois de um curto período problemático na escola foi classificado como super-dotado indo estudar numa instituição especial. Hilário é ver o filósofo se referir a si mesmo na terceira pessoa afirmando que o garoto problemático, Little Ronie (ele com seu nome do meio), era um pequeno gangsta à época. O batismo na igreja que seus pais frequentavam, os primeiros livros lidos, a admiração, apreciação e influência da música negra e os primeiros contatos amorosos são descritos de forma detalhada pelo intelectual que vai enumerando autores, ativistas, canções com seus ou suas respectiv@s intérpretes além da sua atração pelo sexo feminino.
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O garoto promissor da família foi aceito em Harvard com dezoito anos e cursou a graduação em filosofia em três (um recorde na instituição). O doutorado foi realizado em Yale com um período de bolsa em Harvard. Durante a graduate school o intelectual ainda casou (o primeiro dos seus três casamentos), teve o primeiro filho (posteriormente teria uma filha) e se divorciou. Aos poucos vai surgindo o Cornel West que poucos conheciam. Todos os dilemas e contradições que se colocaram a sua trajetória são explicadas pelo autor como resultado de sua opção de colocar a sua vocação à frente de tudo mais na sua vida. Sendo assim, o intelectual, professor e ativista carismático, talentoso e famoso é o mesmo que enfrentou três divórcios que o levaram a bancarrota financeira mesmo enquanto desfrutava o ápice do sucesso de Race Matters. Essa obra de West foi responsável por recolocar a centralidade de discussões raciais num momento em que explicações neo-liberais e conservadoras estavam cada vez mais em foca. O grande mérito do filósofo neste livro é de conseguir estabelecer uma conexão entre a América antes e depois dos movimentos pelos direitos civis e como raça se rearticula com a reestruturação do sistema capitalista. Constam ainda no livro a defesa da manutenção das ações afirmativas que se encontrava sobre ataque à época, uma discussão dos limites do pensamento racialista, a relação entre negros e judeus, reflexões sobre a sexualidade e niilismo dos afro-americanos, a tradição de intelectual conservadora negra além do legado de Malcolm X. Tudo isso numa linguagem simples e acessível a qualquer leitor. O livro teve como leitor célebre o presidente Bill Clinton e West foi convidado para um jantar na Casa Branca. By the way, seu nome também entrou para a lista de vários grupos racistas e sua casa em Harvard foi invadida em uma ocasião por um homem encapuzado que carregava uma pistola automática com silenciador. O resto é história...
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Mas West é mais do que Race Matters e esse é ao mesmo tempo o ponto mais forte e fraco do livro. É válido conhecer o professor que por algum tempo viveu como homeless dormindo nos bancos e jardins do Central Park, que toma a música negra como inspiração para sua obra se afirmando como um "bluesman in the life of mind and a Christian jazzman in the world of ideas", o intelectual romântico que namorou a bela cantora de música erudita Kathleen Battle, o homem apaixonado que após uma cerimônia de casamento sultuosa em Adis Abeba, Etiópia, tem a sua vida e da amada ameaça por rebeldes que cercam o palácio onde se realizara o enlace, o intelectual que estende sua atuação as filmes, álbuns de hip-hop, talk shows, explica a inspiração de seu visual buscado em jazzmen e pastores negros, que leciona um curso com 700 calouros em Harvard e explica detalhadamente o motivo de sua saída daquela instituição depois de um conflito com o presidente da universidade à época Lawrence Summers, uma polêmica que ganhou as páginas dos principais jornais e revistas norte-americanos.
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O problema é que todas essas histórias levam o livro para um pessoalismo excessivo no qual é difícil ver contradições ou uma relação mais conflituosa entre o homem e sua obra. West acaba sendo bonzinho e perfeito demais e, vamos e convenhamos, nenhum ser humano é assim. O ápice do pessoalismo é notado quando West afirma que deixou seus três casamentos porque era necessário que suas ex-esposas, como mulheres inteligentes e criativas que são, pudessem ter mais espaço e desenvolveram suas carreiras uma vez que a presença dele as obscurecia. Well well... Entretanto, essas são observações chatas que só um cara que resenha o livro (como eu!) deve fazer. Para leitore/as menos crític@s ou chatos as 275 páginas do livro podem ser apreciadas sem grande desconforto. Porém, Cornel West ainda necessita de uma biografia intelectual escrita com distanciamento pessoal e estabelecendo conexões entre texto e contexto, vida e obra. Talvez, outro West possa surgir dessas futuras páginas, um West nem melhor nem pior, apenas menos coerente e, consequentemente, mais humano.
Para saber mais sobre o Doutor West visite o site dele AQUI
Muita Paz e Bom Ano!