Aqui vai meu último post do ano. Acabo de ler a autobiografia do filósofo norte-americano Cornel West intitulada Brother West Living and Loving Out and Loud: A Memoir publicada em 2009. Apesar de ser celebridade intelectual nos EUA, West é pouco conhecido no Brasil fora das rodas de intelectuais, pesquisadores e ativistas que se dedicam ao tema das relações raciais e outras áreas correlatas. Dos seus mais de vinte livros há apenas um traduzido para o português: o clássico Race Matters cuja publicação data de 1993. Há também um coletânea de artigos escritos em parceria com Roberto Mangabeira Unger. Race... foi publicado no Brasil em 1994 pela Companhia das Letras com o título de Questão de Raça. Ainda me lembro do prazer que tive ao ler essa obra pela primeira vez no distante ano de 1998, meu segundo ano de estudante de ciências sociais na USP, e o impacto que ela teve em minha formação.
Race Matters atirou West para o sucesso, mas a experiência de ler os ensaios coerentes, elegantemente bem escritos, engajados e apaixonados desse livro pouco se compara a ver essa figura, que é um misto de filósofo e teólogo, falar em público. Ano passado tive o prazer de pela primeira vez assisti-lô e trocar rápidas palavras com ele em um colóquio realizado na New York University (NYU) no qual participavam outros três intelectuais de peso: Jürgen Habermas, Judith Butler e Charles Taylor. Havia muita gente para ver Habermas e Butler, mas digo com certeza que a maior parte dos negros (eu me incluo nessa massa) estava lá interessada em ver a performance de Doctor West, maneira como o chamam por aqui (reverência que, apesar do título que todos possuem, poucos professores da área de humanas levam na vida cotidiana). Pois bem, Doctor West é um show! Fala de forma livre sem ter um texto escrito ou roteiro pré-determinado, usa toda a tradição dos pastores afro-americanos com entonações diferentes de voz, paradas estratégicas, caretas, corporalidade e piadas que levam o público ao delírio. Assista parte de uma entrevista do homem no vídeo aí embaixo. Nele West descreve um encontro que ele e sua família tiveram com o ex-presidente Ronald Reagan (1911-2004) quando esse era então governador da Califórnia, entre 1967 e 1975, e West tinha apenas 16 anos.
Feita a apresentação de West aos que nunca ouviram falar dele vamos ao que interessa. Devo dizer que prefiro biografias a autobiografias. Os dois formatos de obra sofrem sérios riscos, mas tendo a ver o segundo como mais problemático. Depois de mais uma centena de páginas lidas é quase impossível não ser arrebatado pela impressão de que o autor sofre de certo egocentrismo e que o livro não passa de um exercício radical de narcisismo. Isso ocorre não necessariamente porque os autores são de fatos narcisistas, mas devido a forma como a memória funciona. A memória é uma construção do passado a partir do presente. Isso significado que a leitura que fazemos do nosso passado é realizada de forma a dar coerência ao que somos e vivemos hoje. Assim sendo, quando reconstruímos nossa trajetória apagamos/esquecemos tudo o que havia de contraditório, problemático e que se postava como dilemas. Obviamente que determinadas biografias não podem se dar a esse luxo, uma vez que elas só nascem a partir da resolução de determinadas conflitos e rompimentos que estabelecem fins e inícios de períodos. Um grande exemplo aqui é a autobiografia de Malcolm X (1925-1965), escrita por Alex Haley (1921-1992) a partir de conversas com o líder negro. Haley usou outra estratégia que agradou o público leitor: ele construiu uma narrativa muito próxima da estrutura de um romance cujo o final todos já sabiam, ou seja, a fatídico assassinato de Malcolm. Há quatro rompimentos/fases essenciais na narrativa da vida de Malcolm: sua primeira infância marcada pela perda do pai e a desestruturação familiar; a adolescência de sucesso escolar e aspirações de ascensão social; a vida de criminoso e, por fim, a ascensão como líder religioso/político.
David Ritz, autor de várias biografias e autobiografias, tentou criar uma narrativa agradável ao trabalhar com West nesse projeto estabelecendo rompimentos e fases distintas a vida do filósofo. Contudo, o resultado deve desagradar um público mais especializado e que conhece minimamente o trabalho do professor enquanto é sucesso garantido entre o público leigo em questões intelectuais e que conhece West de suas aparições na TV ou lectures. A tese central do livro é que West é o resultado da tradição na qual sua família está inserida: cristã/batista, classe média baixa com antepassados de classe trabalhadora e com pais dedicados aos filhos. A família de West é a personificação da respeitabilidade negra construída pela classe média e elites afro-americanas para fazer frente ao racismo desumanizador norte-americano. Essa atitude, que era interiorizada pelos negros mais aquinhonhados, consistia em valorização da ética do trabalho, dos estudos, religiosidade, cuidados com a aparência pessoal, moralidade quase vitoriana e ativismo. West, que nasceu em 1953, é fruto disso tudo, mas viveu sua adolescência e juventude nos anos 1960 e 1970 momentos de transição na sociedade americana. Os pais de West eram sofisticados intelectualmente. A mãe era professora e o pai empregado numa base áerea do governo americano. Ambos haviam cursado universidade e estavam situados num lócus mediano na estratificação social de Sacramento, cidade onde moravam no estado da Califórnia. West cresceu nesse meio em companhia do irmão mais velho Cliff e duas irmãs mais novas. Logo depois de um curto período problemático na escola foi classificado como super-dotado indo estudar numa instituição especial. Hilário é ver o filósofo se referir a si mesmo na terceira pessoa afirmando que o garoto problemático, Little Ronie (ele com seu nome do meio), era um pequeno gangsta à época. O batismo na igreja que seus pais frequentavam, os primeiros livros lidos, a admiração, apreciação e influência da música negra e os primeiros contatos amorosos são descritos de forma detalhada pelo intelectual que vai enumerando autores, ativistas, canções com seus ou suas respectiv@s intérpretes além da sua atração pelo sexo feminino.
O garoto promissor da família foi aceito em Harvard com dezoito anos e cursou a graduação em filosofia em três (um recorde na instituição). O doutorado foi realizado em Yale com um período de bolsa em Harvard. Durante a graduate school o intelectual ainda casou (o primeiro dos seus três casamentos), teve o primeiro filho (posteriormente teria uma filha) e se divorciou. Aos poucos vai surgindo o Cornel West que poucos conheciam. Todos os dilemas e contradições que se colocaram a sua trajetória são explicadas pelo autor como resultado de sua opção de colocar a sua vocação à frente de tudo mais na sua vida. Sendo assim, o intelectual, professor e ativista carismático, talentoso e famoso é o mesmo que enfrentou três divórcios que o levaram a bancarrota financeira mesmo enquanto desfrutava o ápice do sucesso de Race Matters. Essa obra de West foi responsável por recolocar a centralidade de discussões raciais num momento em que explicações neo-liberais e conservadoras estavam cada vez mais em foca. O grande mérito do filósofo neste livro é de conseguir estabelecer uma conexão entre a América antes e depois dos movimentos pelos direitos civis e como raça se rearticula com a reestruturação do sistema capitalista. Constam ainda no livro a defesa da manutenção das ações afirmativas que se encontrava sobre ataque à época, uma discussão dos limites do pensamento racialista, a relação entre negros e judeus, reflexões sobre a sexualidade e niilismo dos afro-americanos, a tradição de intelectual conservadora negra além do legado de Malcolm X. Tudo isso numa linguagem simples e acessível a qualquer leitor. O livro teve como leitor célebre o presidente Bill Clinton e West foi convidado para um jantar na Casa Branca. By the way, seu nome também entrou para a lista de vários grupos racistas e sua casa em Harvard foi invadida em uma ocasião por um homem encapuzado que carregava uma pistola automática com silenciador. O resto é história...
Mas West é mais do que Race Matters e esse é ao mesmo tempo o ponto mais forte e fraco do livro. É válido conhecer o professor que por algum tempo viveu como homeless dormindo nos bancos e jardins do Central Park, que toma a música negra como inspiração para sua obra se afirmando como um "bluesman in the life of mind and a Christian jazzman in the world of ideas", o intelectual romântico que namorou a bela cantora de música erudita Kathleen Battle, o homem apaixonado que após uma cerimônia de casamento sultuosa em Adis Abeba, Etiópia, tem a sua vida e da amada ameaça por rebeldes que cercam o palácio onde se realizara o enlace, o intelectual que estende sua atuação as filmes, álbuns de hip-hop, talk shows, explica a inspiração de seu visual buscado em jazzmen e pastores negros, que leciona um curso com 700 calouros em Harvard e explica detalhadamente o motivo de sua saída daquela instituição depois de um conflito com o presidente da universidade à época Lawrence Summers, uma polêmica que ganhou as páginas dos principais jornais e revistas norte-americanos.
O problema é que todas essas histórias levam o livro para um pessoalismo excessivo no qual é difícil ver contradições ou uma relação mais conflituosa entre o homem e sua obra. West acaba sendo bonzinho e perfeito demais e, vamos e convenhamos, nenhum ser humano é assim. O ápice do pessoalismo é notado quando West afirma que deixou seus três casamentos porque era necessário que suas ex-esposas, como mulheres inteligentes e criativas que são, pudessem ter mais espaço e desenvolveram suas carreiras uma vez que a presença dele as obscurecia. Well well... Entretanto, essas são observações chatas que só um cara que resenha o livro (como eu!) deve fazer. Para leitore/as menos crític@s ou chatos as 275 páginas do livro podem ser apreciadas sem grande desconforto. Porém, Cornel West ainda necessita de uma biografia intelectual escrita com distanciamento pessoal e estabelecendo conexões entre texto e contexto, vida e obra. Talvez, outro West possa surgir dessas futuras páginas, um West nem melhor nem pior, apenas menos coerente e, consequentemente, mais humano.
Para saber mais sobre o Doutor West visite o site dele AQUI
Muita Paz e Bom Ano!
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
A Trajetória de Brother West!
2010-12-31T00:14:00-02:00
Márcio Macedo
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