quinta-feira, 16 de julho de 2009

Mais de Bailes!

Já que estava falando de baladas em meu último post, achei que seria legal disponibilizar um texto meu que saiu num livro sobre bailes organizado pelo pessoal do Quilombhoje Literatura em 2007 que foi editado com grana do Ministério da Cultura/Fundação Palmares. O livro intitula-se Bailes: Soul, Samba-Rock, Hip-Hop e Identidade em São Paulo e foi organizado pelos meus amigos Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro. Há ainda um DVD contendo um documentário com o mesmo título. Obrigado a Márcio por ter me convidado a participar de um projeto que ficou tão bonito!


ANOTAÇÕES PARA UMA HISTÓRIA DOS BAILES NEGROS EM SÃO PAULO

Márcio Macedo

Sessão Flash Back: Recordar é Viver!


Era um sábado de Aleluia numa pacata e monótona cidade do interior paulista no distante ano de 1990. Por volta das sete da noite, eu mais um brother amigo de infância caminhávamos pelas ruas de nosso bairro sem destino estabelecido. Enquanto os filhos das famílias mais abastadas se empanturravam de chocolate naquela noite, nós íamos de um boteco para outro tomando tubaínas e comendo porções de amendoim que nosso ralo dinheiro podia comprar. Sonhávamos! Queríamos um futuro com tudo aquilo que não tínhamos: grana; carros; fama; uma mina bonita, gostosa e se possível branca. Tudo aquilo que – em nossa opinião – faria de nós pessoas felizes que exibiriam sorrisos de fazer inveja a propagandas de pasta de dente.

Depois de algumas horas de caminhar vagaroso os assuntos começaram a escassear e já estava disposto a voltar para casa e dormir. Entretanto, minha intenção foi postergada devido a um encontro fortuito com um amigo: Chicão. O nome Francisco não descrevia muito bem esse nosso conhecido, daí o apelido: negro retinto, forte e, do alto dos seus um e noventa a alguma coisa de altura, encontrava-se um rosto com expressões meio infantis. Travamos conversa e ele nos explicou que estava indo para o Grêmio dos (sic) negrão – na cidade havia outro clube também denominado “grêmio” – “pegar” um baile em que a atração principal seria o grupo de rap Thaide e DJ Hum. Meu truta e eu ficamos fascinados. Há algum tempo já vínhamos cultivando certa expectativa e ansiedade de ir a um baile da negrada, mas nossas intenções eram sempre podadas pelo imaginário que pairava sobre as festas black na cidade: coisa de ladrões, vagabundos, maconheiros, maloqueiros, brigas, confusões e mortes para ficar nas associações mais leves.

Jogando mais tempero em nossa vontade, o patrício fez uma sugestão tentadora em meio a seu sorriso meio bobo no rosto escuro: “Porque vocês não colam no barato? Pelo jeito, vai estar da hora: várias minas e vários pesos até as cinco da manhã!”. Eu e meu amigo nos entreolhamos e, quase que simultaneamente, respondemos: “A gente tá a fim, mas não temos grana para entrar” ao que nosso amigo respondeu, “Nem esquenta! Cola no bagulho e a gente resolve na hora.”

Diante daquela resposta nada mais natural do que seguir o curso de nossos desejos. Cada um foi para sua casa com a intenção de tomar um banho e trocar de roupa. Por volta das onze horas nos encontramos novamente e tomamos o último ônibus da noite em direção ao clube. No circular já pudemos avistar várias pessoas que, devido a indumentária e cor de pele, aparentavam ir para o mesmo destino que o nosso. Ao descer do ônibus e me ver em frente ao clube fiquei chocado. Nunca havia visto tanto(a)s negro(a)s reunido(a)s junto(a)s, a não ser na televisão num daqueles filmes americanos. Eram de todos os jeitos e estilos, com cabelos diferentes, roupas descoladas e sorrisos. A noite prometia!

A missão agora era encontrar Chicão e pedir que ele cumprisse sua promessa de nos colocar para dentro da festa. Começamos a perguntar pelo sujeito, mas ninguém o havia visto, a maioria nem o conhecia. Outro amigo nosso, Mauricinho, já estava dentro da festa e nos avistou da portaria. Perguntou se iríamos entrar e respondemos que estávamos procurando pelo cara que havia prometido nos colocar dentro do baile. Ele disse que não havia visto o fulano, mas tinha um esquema para entrar sem pagar. Pediu para que fossemos nos fundos do clube e para lá nos dirigimos. Por uma fresta do muro Mauricinho falou que a estratégia era pular o muro do clube. Naquele momento me vi num dilema. Nos meus dezesseis anos de idade nunca tinha sido bom nesse negócio de escalar muros e árvores, ao contrário do que acontecia com a maioria dos garotos. Para além disso, o que aconteceria se me pegassem? E se meus pais soubessem? Já estava disposto a ir embora quando ouvi as batidas compassadas dos raps que vinham de dentro do salão e que ecoavam na rua. Como eu queria entrar naquele baile. Repentinamente decidi: vou pular.

Fiz um esforço fenomenal e pulei dentro de um terreno baldio, o que não foi difícil. Agora vinha a segunda parte: pular para dentro do clube. Respirei fundo e enfrentei o segundo muro muito mais alto que o anterior. Contudo, não conseguia transpô-lo. Escorregava e voltava no mesmo lugar, já que não havia no que apoiar. O que me dava forças para continuar tentando era o eco das músicas que chegava aos meus ouvidos. Era como se fosse à trilha sonora de minha pequena aventura. Depois de várias tentativas finalmente conseguir subir no muro e de lá vi o interior do clube. Mauricinho, parado bem a minha frente em uma das portas gritava “Pula, pula!...”. Joguei–me para dentro do clube numa parte que parecia um quintal e todas as pessoas que estavam por ali nos observavam com expressões nos rostos que eram um misto de curiosidade, graça e vergonha.

Quando entrei no salão tinha as roupas manchadas pela tinta do muro além de mãos e braços solados. No entanto nada disso importava, pois eu já estava num outro mundo. A música alta causava-me arrepios através de batidas fortes e compassadas, garotas nos mais diversos matizes de pele escura me fitavam e dirigiam olhares de paquera (foi nesse exato momento que me apaixonei pelas mulheres pretas), brothas e sisthas faziam passos de dança que eu nunca tinha visto nem ouvido falar. Era um mundo povoado por gente negra, dança, amor, ódio, gírias, orquestras, soul, funk, rap, jazz, samba, samba-rock, DJs, equipes de som, circulares (flyers), seguranças brigões, samba-rock, toca-discos, filas, roupas descoladas, xavecos para não pagar a entrada entre outras coisas. Esse era o mundo dos bailes e no meu primeiro eu havia pulado o muro!

Sessão Balanço e Samba: Sai Dançando…

Forneci acima um exemplo pessoal de como os bailes negros estão presentes no cotidiano da população afro-brasileira. Para além desse fato, é válido afirmar que a relação entre bailes e população negra é bastante antiga, muito mais que o meu simpático ano de 1990, merecendo ser analisada e pesquisada. Minha intenção nesse pequeno texto não será de apresentar uma visão apurada ou acadêmica sobre essa relação, mas tecer breves comentários sobre ela de forma livre. Um adendo deve ser feito de antemão. A história a ser contada nas próximas linhas é relatada a partir da cidade de São Paulo como resultado da minha condição de paulista que só me permite falar com mais propriedade centrado nesse locus geográfico e não porque desconsidere a experiência de outras localidades.

Talvez as primeiras constatações de bailes entre a população negra de São Paulo datem do começo do século XX. É possível constatar esse fato pela leitura de periódicos, pois os clubes ou associações de baile noticiavam seus eventos nos jornais que ficariam posteriormente conhecidos como Imprensa Negra Paulista. Órgãos informativos como O Menelick, Clarim da Alvorada, Cosmos entre outros eram espaços de divulgação e comentários – leiam como fofocas e fuxicos – das festas dançantes que aconteciam entre os negros paulistanos.

Os ritmos que animavam esses eventos variavam. De acordo com os relatos de José Correia Leite, importante militante negro e jovem a essa época, as orquestras costumavam tocar desde a valsa francesa, passando pelo ragtime e chegando ao jazz. Tudo leva crer que o modelo de baile seguia aquele apresentado nas sociedades dançantes dos grandes clubes da sociedade paulistana ou dos meios imigrantes. Nos anos 1930 a Frente Negra Brasileira, a maior organização política já criada entre a população negra, também manteve o hábito de realizar festas dançantes com conjuntos de música compostos por associados.

Se fizermos certo esforço no sentido de ajustar as lentes e observar com mais cuidado esse período, veremos que a segmentação dos bailes por classe e grupo étnico/racial estava em sintonia com a maneira que a sociedade paulistana estava organizada. É por esse motivo que era possível falar em bailes de negros, espanhóis, italianos e de indivíduos da alta sociedade. Essa separação das festas também era mantida por meio da restrição deliberada da entrada de pessoas que não pertencessem ao grupo promotor do evento ou através de preços proibitivos que impossibilitavam o acesso da população menos aquinhoada. Eram essas proibições também que impediam vários negros de freqüentarem os famosos bailes de orquestras que ocorriam nos anos 1950. A saída buscada por eles foi à organização de festas próprias que ficariam conhecidas como bailes de quintal ou garagem e eram restritas a amigos e conhecidos. O barateamento e, conseqüente, popularização das vitrolas viabilizou a realização desses eventos que cresceram até o ponto de deixar as áreas livres das residências e se expandir para salões de festas.

Os anos 1960 foram agitados no Brasil e no mundo. Época de transformações radicais para negros, brancos, africanos e mulheres. Guerra Fria, processo de independência dos países africanos, Flower Power e Woodstock, movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, Primavera de Praga estão entre alguns dos acontecimentos históricos ocorridos nesse período e relacionadas a mudanças políticas e comportamentais. O penteado que se popularizou entre os jovens negros era chamado de black power (poder negro) pelos negros brasileiros e afro pelos americanos. Fazia referência não apenas a uma moda, mas um símbolo de aceitação da negritude incorporada no cabelo crespo. James Brown cantava em uma de suas mais conhecidas canções “Say it loud, I’m black and I’m proud” (Diga alto, eu sou negro e me orgulho disto!). Malcolm X (1925-1965), Martin Luther King (1929-1968) , Rosa Parks (1913-1925), Marvin Gaye (1939-1984), Black Panthers e revolucionários africanos como Kwane Nkrumah (1909-1972), Steve Biko (1946-1977), Patrice Lumumba (1925-1961) e Nelson Mandela influenciavam a juventude negra de todo o planeta. A pílula anticoncepcional possibilitou a revolução sexual e o movimento feminista.

Enquanto a juventude branca de classe média ouvia a novidade cristalizada no rock in roll e transformada em sua versão brasileira no iê-iê-iê e na jovem guarda, jovens negros dançavam os primeiros passos da música da alma: soul. Também foi nessa época que apareceram as equipes de som e os primeiros DJs ao mesmo tempo em que negros paulistas criavam o samba-rock: um estilo de dança que misturava passos oriundos do rock, do samba e de ritmos caribenhos como a rumba e a salsa. De acordo com a história contada pelos “nego véio”, isso aconteceu nas festas do Seu Oswaldo, tido como o primeiro DJ de São Paulo e responsável por organizar eventos na região dos Campos Elíseos. Suas reuniões dançantes eram conhecidas como exibições da “orquestra invisível”, já que este senhor, ao adaptar uma vitrola para tocar de forma amplificada escondida atrás de uma cortina, dava a impressão a seu público de que uma orquestra de verdade estava tocando, a despeito de não a verem.

Em meados dos 1970 a soul music se consolidou possibilitando novas experimentações como a radicalização que daria no funk de George Clinton e suas bandas Parliament e Funkadelic Funk. Tim Maia, Hildon, Toni Tornado, Sandra de Sá, Gerson King Combo, Dom Salvador, Cassiano, Carlos Dafé, Jorge Ben – e não Benjor! – eram os representantes do Brazilian soul, do samba-soul, do swingue e do que eu chamaria de MPB: música preta brasileira. Para captar esse turbilhão de coisas novas não era necessário ler livros ou viajar para lugares distantes, bastava se produzir e freqüentar um baile da Chic Show em São Paulo ou uma Noite do Shaft que rolava no Renascença Clube no Rio de Janeiro. As equipes de som ficaram conhecidas e nomes como Furacão 2000, Chic Show, Company Soul, Transa Negra passaram a fazer parte do vocabulário dos jovens negros antenados.

Nessa mesma época na Cidade Maravilhosa, o Black Rio, nome pelo qual esse movimento ficaria conhecido, virou tema de música de Gilberto Gil e chamou a atenção da imprensa da época. Entretanto, não foram apenas os jornais e revistas que se interessaram pelo burburinho negro de jovens armados de pentes em forma de garfo, mas também os órgãos de vigilância do Estado já que, para quem não se lembra, estávamos em plena ditadura militar que havia feito sua estréia em meados de 1964. Há uma sugestão dada – mas não devidamente pesquisada – de que os militares agiram de forma ativa na desorganização do Black Rio que, por conta da politização das suas festas, era visto como um núcleo subversivo em potencial. O clima de politização dos bailes soul pode ser medido se levarmos em conta que havia muito contato dos promotores dos eventos – baileiros – com jovens que viriam a fundar organizações do movimento negro contemporâneo em fins dos 1970. Outros jovens montaram equipes de som próprias especificamente com o intuito de atuar politicamente. Em Salvador, os fundadores do bloco afro Ilê Ayê tiveram como influência a ideologia do Black Power, antes de surgirem no carnaval soteropolitano de 1975 causando polêmica por não permitirem que brancos desfilassem na agremiação que – se me permitem a brincadeira! – era 100% negra para desespero dos defensores da mestiçagem e da democracia racial. Aliás, esse último conceito, antes visto como definidor do Brasil, passava a ser interpretado como uma falácia ou inverdade que mascararia relações de opressão de brancos para com negros e mestiços por ativistas e acadêmicos.

A música soul tocada nos bailes catalisou debates nos quais se envolveram figuras intelectuais do calibre de Gilberto Freyre. Numa discussão centrada e polarizada na idéia de existência de elementos culturais nacionais e importados, os negros brasileiros freqüentadores dos bailes eram vistos como alienados, pois desprezariam o produto nacional samba em favor de ritmos estrangeiros – como o soul e funk – que não guardariam relação nenhuma com a realidade de nosso país. Todavia, essa separação tomava contornos diferenciados para os freqüentadores de bailes como mostram estudos. Os organizadores da Noites do Shaft no Rio de Janeiro, por exemplo, entendiam o samba como destituído de “consciência” racial, apesar de ser o melhor representante de algo genuinamente negro/brasileiro. A negritude, ironicamente, viria com o ritmo “importado” soul! Por outro lado, em muitas das festas que ocorriam em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre os DJs tocavam não apenas soul ou samba, mas ambos conjuntamente a uma série de outros ritmos que não se enquadravam em binarismos ou rótulos. A ordem era dançar desde que a música fosse boa!

Algo interessante e digno de nota diz respeito as estratégias lancadas pelos DJs e suas respectivas equipes na disputa pelo público. Algumas dessas táticas pareciam terem sido retiradas de livros como Arte da Guerra do general chinês Sun Tzu. Ter exclusividade sobre a execução de determinadas canções e certos artistas eram garantia de atrair o público. Contudo, as gravadoras nacionais muitas vezes não se interessavam em lancar compilações com vários artistas internacionais ou não acompanhavam o ritmo do mercado musical americano que era muito dinâmico. Por outro lado, ter acesso a discos importados pelas vias normais de importação, além de ser dificil, era extremamente caro. Isso ocorria porque a essa época a população brasileira estava privada do consumo de produtos importados devido a um projeto de economia que subsidiava e favorecia a indústria nacional por meio do estabelecimento de altíssimas taxas alfandegarias aos produtos que vinham do exterior. As soluções que os promotores de festas lançaram mão para solucionar esse impasse foram as mais diversas. Discos eram trazidos para as equipes através de pilotos de avião que trabalhavam nas rotas comerciais entre Brasil e Estados Unidos ou por meio dos navios que atracavam nos portos de Santos e do Rio de Janeiro. Quando os plays chegavam, os DJs tinham como tática retirar o rótulo dos mesmos e apenas enumerá-los com intuito de evitar a identificação por parte de disc jóqueis de equipes rivais. As equipes mais bem estabelecidas enviavam membros de seu staff para terras yankees com a missão de comprar as “bolachas” exclusivas. Há histórias famosas de brothers que foram para a América do Norte fazer o trabalho de “sacoleiros de discos” e lá chegando, depois de algumas farras com patrícios gringos, acabavam por gastar todo o dinheiro tendo como única opção para retornar ao Brasil ser deportados como imigrantes ilegais. Com certeza essa e vários outras histórias foram contadas nos encontros semanais que jovens negros realizavam no Viaduto do Chá, local que os freqüentadores de bailes soul se reuniam para trocar informações, beber uma cerveja nos botecos dos arredores ou “dar um tapa no belo” em um dos salões black do Shopping Center Grandes Galerias.

A “cultura” das circulares é algo digno de nota. Esses pequenos papéis, modernamente conhecidos como flyers, faziam a promoção das festas e auxiliavam do velho esquema de divulgação “boca a boca”. Muito próximo da experiência dos zines, as circulares eram (e são!) uma mídia alternativa em uma época em que não existia internet e as divulgações por rádio e TV eram extremamente caros. As circulares eram tão populares que passaram a ser objeto de interesse de colecionadores como forma de relembrar festas e fatos memoráveis. Eu mesmo tenho algumas guardadas em casa!

Durante os anos 1970, 1980 e parte dos 1990 os bailes firmaram e se expandiram. Através deles o rap chegou até a juventude negra, um ritmo musical que seria responsável por uma revolução na musical e comportamental só comparada a que o rock in roll tinha causado em décadas anteriores. No mundo das festas black, gírias e termos foram criados enquanto outros, já existentes, passaram a ser usados de forma idiomática. Expressões como mano, mina, função, pizza, playboy ou simplesmente boy, bombojaco, circular, pisante, artigo, vagabundo, o bicho vai pegar, treta, play, pick up, lagartixa, comédia, pipoco, melodia, peso, bagulho, salão, bombeta, vacilão, levar uma letra são apenas alguns exemplos de termos que faziam referência a universo dos bailes negros. Referências espaciais de lugares também localizavam a “cultura” dos bailes por meio de loci espalhados pela cidade. Qual paulistano negro(a) nunca ouviu falar em lugares como Diamante Lapa, São Paulo Chic, Sambarylove, Chopapo, Ginásio do Palmeiras (a despeito da maioria negra corinthiana!), Clube da Cidade, Cruz da Esperança, Som de Cristal, Aristocrata Clube, Club Homs e Casa de Portugal para ficar nos mais conhecidos? Essas peculiaridades foram registradas de maneira exemplar na canção de Thaide e DJ Hum “Senhor Tempo Bom”.

Em São Paulo Chic Show, Zimbabwe, Black Mad, Circuit Power dentre outras promoviam shows com artistas internacionais numa época em que essa empreita era vista com receio até mesmo por empresários bem estabelecidos no mundo do entretenimento. Apresentaram-se no Brasil artistas como Beth Wright, Freddie Jackson, Kool Moe Dee, Too Short, Ice T, Public Enemy, Mad Lion, Born Jamericans dentre outros. Famosos cantores nacionais como Tim Maia e Jorge Ben também eram atrações constantes. No início dos 1990 as equipes criaram selos independentes que lançaram grupos de samba que renovaram a cena desse ritmo por meio do tão amado e odiado pagode. Quem não se lembra de grupos como Katinguele, Soweto e Negritude Júnior que tem em comum uma trajetória marcada por contratos iniciais com equipes de som por meio de suas gravadoras. O mais importante e famoso grupo de rap – Racionais MCs – também lançaria seus trabalhos iniciais por um selo independente de propriedade de uma equipe.

É preciso lembrar que distinções entre bailes começa a tomar forma na década de 1980. De acordo com o que afirmam alguns DJs o Miami bass – ritmo oriundo do sul dos Estados Unidos cujos traços característicos são sons criados a partir de sintetizadores eletrônicos com batidas rápidas e compassadas – influenciaria o som tocado pelas equipes do Rio de Janeiro e forneceriam a base para o surgimento do “funk carioca”. Já em São Paulo, a sonoridade das equipes estaria mais antenada com o que rolava em Nova York, de modo que, o tipo de música que seria criado pelos primeiros rappers paulistanos buscaria se espelhar na sonoridade e características dos grupos oriundos da Big Apple. Brinca-se entre os entendidos que em termos de música negra e contornos urbano/geográficos o Rio está para Miami assim como São Paulo está Nova York. Também surgem no Rio dessa época os bailes funk e depois de algum tempo o seu alterego: bailes charme. Em São Paulo os bailes nostalgia foram criados por conta de uma demanda oriunda de um público mais velho e com melhor poder aquisitivo que buscava se diferenciar da juventude a partir de códigos de vestimenta e musicalidade especificas.

A segunda metade dos anos 1990 foi uma época de mudanças radicais para todos aqueles envolvidos com o entretenimento negro. O processo de globalização da economia mundial foi responsável pela divulgação exacerbada no mundo todo de uma musicalidade, um estilo de vida e uma estética vinculados às populações negras e latinas do eixo Nova York, Los Angeles, Kingston e Londres. Ritmos como rap, R&B, neo soul, ragga, dancehall e, mais recentemente, o reggaeton tornaram-se populares em várias partes do globo enchendo os bolsos de gravadores, artistas, produtores e profissionais do mais diversos ramos da música e do entretenimento. Em São Paulo esse fenômeno pode ser notado pelo súbito interesse que donos de clubes localizados em areas de lazer elitizadas passaram a demonstrar em realizar as chamadas “noites black” que se diferenciavam bastante dos bons e velhos bailes negros.

Apesar de visar um público diferenciado – branco, das classes média e alta – as noites black também atrairam o público negro através do oferecimento de uma série de serviços diferenciados como instalações confortáveis, servico de manobrista, aceitação de cartões de crédito, segurança e até presença de personalidades. O sucesso desses eventos também foi facilitado pela centralidade e importância que a figura do DJ passou a ter a partir dos anos 1990. Esse profissional começou a ser valorizado e reconhecido como músico devido sua performance diante do público e atividades de produção musical. Além disso, disc-jóqueis de renome viriam a disputar espaço com as equipes, pois com a facilidade de acesso aos discos, CDs e informações possibilitadas pela mundialização da economia e pelo advento da internet teve lugar profunda transformação nas festas. Cada DJ passou a ter, como obrigação profissional, um acervo fonográfico próprio e uma maneira de tocar personalizada que com o decorrer do tempo associada ao seu nome lhe permitia usá-los como uma espécie de marca, grife ou rótulo comercial. Assim sendo, as casas noturnas forneciam o espaço físico enquanto que os DJs, tidos, a partir desse momento, como músicos e celebridades, traziam nome e um estilo específico a festa por meio de suas seleções musicais. O resultado disso tudo foi que muitas equipes viram um encolhimento do seu mercado e algumas, por conta dessas mudanças, a competição com as casas noturnas e atritos internos, acabaram por se extinguir. Esse foi o caso da mais famosa equipe de São Paulo, a Chic Show.

Por outro lado, a distinção ou especialização das festas seguiu uma tendência que já havia começado na década de 1980, mas se dinamizou na de 1990. Atualmente é possível freqüentar bailes nostalgia como o Musicaliando, Mistura Fina ou o tradicional Cruz da Esperança. Bailes como o Sambarylove e Projeto Radial, anteriormente vinculados a Chic Show, ainda continua a ocorrer. Também é possível ir a festas de hip-hop organizadas só por B-boys, bailes/shows organizados por grupos de rap nacional ou de samba. As casas noturnas continuam a promover noites black, mas não com o mesmo dinamismo e força dos anos 1990. Ironicamente, um termo que é muito comum ouvir entre jovens freqüentadores de bailes é a expressão “underground” que, traduzido ao pé da letra, significa “subterrâneo”, mas que no contexto utilizado pelo público é entendido como “alternativo”. O termo faz referência a possibilidade de ir a uma festa onde é possível dançar ao som de músicas que não são tocadas nas rádios ou em qualquer baile ou noite black. Ao mesmo tempo, as festas tem voltado para locais fora do circuito de lazer mais elitizado da cidade e são realizadas por promotores e DJs jovens que não possuem ligações com as velhas equipes, apesar de entenderem que fazem parte de uma história e processo do quais elas foram seus predecessores. A maioria dos freqüentadores e de negro(a)s e situada numa faixa etária que vai dos 18 aos 30 anos. O que será o futuro reserva para os bailes? Deixemos que o tempo responda…

Sessão Melodia: “Pegando no macio!”

No intuito de finalizar essa pequena incursão pelo mundo dos bailes negros, poderíamos nos indagar o porquê da centralidade do lúdico na história da população negra. Um texto como esse poderia deixar a impressão, a um observador distanciado e mais severo, de que essa enfâse tão grande nas festas ou na ludicidade seria grandemente responsável pela situação de pobreza e desajuste social que assola boa parte da população negra. Em outras palavras, faltaria a ética do trabalho e responsabilidade a esse grupo de indivíduos. De certa maneira, essa era a crítica de alguns ativistas negros em relação ao fenômeno dos bailes e o comportamento de parte da população negra no começo do século XX. Ao se referir a essa atitude de repreensão em relação aos hábitos comportamentais de parte da população negra, o sociólogo Roger Bastide cunhou o termo “puritanismo negro”, pois havia a crença de que o principal motivo de desajuste e exclusão social dos afro-brasileiros eram eles próprios devido a não adequação aos padrões comportamentais e de etiqueta vigentes. O problema desse argumento é que ele transforma as vítimas em algozes ao deixar de lado dois pontos centrais.

O primeiro deles diz respeito a uma negação do racismo na sociedade brasileira como um fenônemo estrutural e organizador das relações sociais. Esse fato corrobara para que a discriminação racial, em suas mais variadas formas cotidianas, seja um dos entraves a mobilidade ascendente da população negra. O segundo ponto é um desconhecimento dos elementos comuns a maioria das culturas africanas e negras diaspóricas: o lúdico e a corporalidade. Esses dois elementos tem um papel importantíssimo na organização social e até mesmo econômica das pessoas negras e africanas no mundo todo. Exemplos disso são as diferenças nas tradições religiosas de tradição judaico-cristã em relação as africanas. Enquanto as primeiras fazem referência a instrospeção e ao martírio terrestre com vistas a uma possível e prometido vida eterna em paraíso pós-morte, as segundas são religiões apegadas ao mundo terrestre, a festa, sem a promessa de paraíso ou vida pós-morte e espaço social onde a corporalidade é vivenciada de forma profunda. Tanto é verdade que as pessoas que fazem parte do povo de santo “dançam” em homenagem aos seus orixás. A atitude de dançar liga-se a cantar e festejar, não podendo ser pensada separadamente. Até parece um baile, não?

A maneira como os elementos presentes nas culturas africanas remodelam as tradições religiosas cristãs pode ser observada no catolicismo popular brasileiro ainda praticado em pequenas cidades e áreas rurais ou nas antigas festas organizadas por Irmandades de Homens Pretos. Em tais eventos a corporalidade, o aspecto lúdico e festeiro das culturas negras se faziam presentes na performance de congadas, batuques, sambas, moçambiques e caiapós. Um bom exemplo contemporâneo é a festa de São Benedito que ocorre anualmente na cidade de Tietê, interior do estado de São Paulo. As atividades religiosas como a missa e a procissão se misturam a uma série de manifestações lúdicas mundanas como as rodas de samba, o batuque, as paqueras entre os jovens e uma tradicional bebedeira para desespero dos mais velhos!

Por fim, penso que as festas e os bailes da população negra como um todo podem ser entendidos a partir da definição dada por Carlos Benedito Rodrigues Silva , a saber, um “espaço negro”. Com esse termo, o antropólogo qualifica esses eventos como espaços de iguais utilizados para resguardar-se de uma sociedade hostil, encontrar os semelhantes e dividir alegrias, tristezas além de buscar o prazer na música, na dança e na paquera numa minimização das dificuldades cotidianas. Que assim seja!

Referências Bibliográficas

MACEDO, Márcio (2007). “Baladas Black e Rodas de Samba da Terra da Garoa”, parte integrante da coletânea Jovens na Metrópole. Editora Terceiro Nome. São Paulo.

BASTIDE, Roger (1983). "A Imprensa Negra do Estado de São Paulo" in Estudos Afro-brasileiros. Editora Perspectiva. São Paulo.

SILVA, Carlos Benedito Rodrigues (1983). “Black Soul: Aglutinação Espontânea ou Identidade Étnica?” in Ciências sociais Hoje 2 – Movimentos Sociais Urbanos, Minorias Étnicas e Outros. Brasília. ANPOCS.



8 comentários:

Anna V. disse...

tu ta onde no momento?
beijinhos

Márcio Macedo disse...

Hi Aninha,

Tô em NYC, boo!

Beijos,

Márcio/Kibe.

Michele disse...

Oi Kibe!

Como sempre, um post ótimo, adorei ler! Sabe, desde criança eu via os cartazes do Chic Show e do Zimbabwe e achava uma coisa de outro mundo! É legal saber qual era a dinâmica da coisa!

Quando você vier a Sampa, me leva? Hehehe...

Bj e inté!

Raphael Neves disse...

Kibão,

Indiquei você para o prêmio "Blog de Ouro".

Siga o link: http://politikaetc.blogspot.com/2009/07/premio-blog-de-ouro.html

Agora, não me peça pra mandar nem um grama do precioso metal porque a coisa é simbólica.

Abraços,
Rapha

Rodolfo disse...

Agora o Ego vai no teto... Acadêmicos... como alimentá-los? Supervalorizando seus trabalhos...

lafayette hohagen disse...

Muito legal o post.Grande abraço do Lafa

Unknown disse...

longo.tive que vencer a preguiça para ler tudo.bueno bueno

agora me diga...onde consigo este dvd sobre os bailes ?

Léo

Márcio Macedo disse...

Porra Léo,

Eu não sei te dizer. Eu tenho uma cópia e posso te fazer outra e lhe mandar.

Abraço,

Márcio/Kibe.