
Madrugada de domingo em Nova York. Acabo de chegar do cinema onde fui assistir
Precious e, como já esperava, não gostei. Já tinha lido o livro e achei o filme muito "
soft". Mas, mudando de assunto, ontem à tarde estava limpando meu quarto, fuçando na Internet e deixando as coisas prontas para o final de semestre que se aproxima. Navegando no site do
Estadão fiquei sabendo do falecimento de Celso Pitta. Fiquei meio transtornado, ainda mais pelo fato de sua morte ter se dado no 20 de novembro, supostamente data da morte de
Zumbi dos Palmares - na verdade, ninguém tem muita certeza disso - e
Dia Nacional da Consciência Negra. Ao mesmo tempo tenho visto, pela
web, fotos de vários amigos meus que participaram da cerimônia de entrega do
Troféu Raça Negra, evento anualmente organizado pela
Afrobras Impossível não pensar: Celso Pitta irá receber, postumamente, um troféuzinho ano que vem? Ele merece? "Vamos por partes", já diria o velho truta Jack. Entretanto, minha aposta é que Pitta não levará o prêmio devotado aos patrícios ilustres da raça a exemplo do ator Milton Gonçalves na foto aí debaixo.

(Nego Véio Milton Gonçalves segurando "firme" o trófeu e a Sheron Menezes, opa!)
Pitta é uma criação da dinâmica política paulista e estará eternamente associado ao que é conhecido nos meios políticos e acadêmicos como malufismo. Paulo Sallim Maluf, um político que dispensa apresentações, foi o padrinho político de Pitta. O economista carioca foi secretário de finanças de Maluf na sua gestão na prefeitura de São Paulo entre 1993/1996 e foi lançado a candidato a prefeitura de São Paulo sagrando-se vitorioso para a gestão 1997/2000. Na época eu fazia cursinho pré-vestibular no Anglo e lembro de uma discussão que tive com uma colega de classe sobre a candidatura de Pitta. Só de ter o nome associado a Maluf, Pitta me metia calafrios, mas a verdade é que uma boa parte das pessoas entrou na onda do voto racializado vindo a eleger o primeiro prefeito negro da cidade de São Paulo.
O voto racializado, ou seja, tendo como fonte de orientação do votante a origem racial do candidato, não é algo comum no Brasil. Abdias do Nascimento, o mais importante ativista negro brasileiro, tentou várias vezes usar essa estratégia, mas a mesma nunca vingou. A maioria dos políticos negros que se elegem no Brasil possuem outras bases eleitorais que agregam a população negra, mas que não se assentam primordialmente sobre ela. Exemplo disso é o caso do deputado federal por São Paulo, Vicentinho, e do também deputado federal, pela Bahia, Luiz Alberto. Ambos são ex-sindicalistas, mas possuem uma ampla aceitação no meio da população negra. Raça, dessa forma, é sempre algo que é usado estrategicamente, ela é um
plus que pode contribuir para o sucesso (ou não!) de uma campanha. Entretanto, é difícil encontrar políticos cuja trajetória é marcada pelo ativismo de bases raciais. Mesmo no caso de Abdias do Nascimento, o ativista só chegou ao senado, em 1997, devido a morte do senador Darcy Ribeiro (1922-1997) do qual era suplente no PTB (para um discussão detalhada sobre esse tema ver o livro de meu ex-orientador
Antonio Sérgio Guimarães,
Classes, Raças e Democracia [2002], também espero o lançamento da tese de doutorado de minha amiga
Gladys Mitchell que passa pelo tema).

(Pitta e sua grande promessa: Fura-Fila)
Com Pitta, o apelo racial foi uma grande sacada estratégica de Maluf (também não gosto dele, mas é necessário tirar o chapéu a visão de jogo político do "homi"). A década de 1990 é vista como um divisor de águas na história do movimento negro no Brasil. Em 1995, com o tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, viu-se mobilizações políticas por todo o país. O ativismo negro nessa época teve uma renovação de quadros e novas forças de atuação foram criadas devido a construção de redes internacionais e concentração em ONGs financiadas, em sua maioria, por instituições estrangeiras. O reconhecimento da existência de racismo no Brasil e a criação de comissões que pela primeira vez propuseram a implementação de políticas afirmativas, se deu em parte devido a pressão que o governo brasileiro vinha sofrendo no exterior por conta do questionamento da situação de sua população negra. Orgulho, questionamento racial e ativismo político estavam em alta. Quem não se lembra da camiseta - adorada por alguns e execrada por outros - com a frase
100% Negro? Ou ainda da aparição da revista
Raça Brasil?
Pois é, e Pitta viajou de carona nessa onda, pois nada melhor para completar o clima de orgulho racial do que a eleição de um prefeito negro para a maior e mais importante (me desculpem cariocas!) cidade do país. Dito e feito! Não entrarei em detalhes do que foi a administração Pitta ou de que se ele era ou não culpado das irregularidades que foram descobertas durante seu governo. Basta dizer que o negrão pegou uma batata mais que quente herdando uma administração e sendo afilhado político de Maluf. A coisa se complicou ainda mais quando o primeiro prefeito 100% negrão de São Paulo quis meter um pé na bunda do seu sinhozinho político e criar independência. A casa caiu! Mas a verdade é que muita gente do movimento negro, principalmente - mas não só - dos grupos mais conservadores, que já tinham um histórico de associação ao malufismo, apoiaram pesadamente Pitta e até hoje acusam que o economista foi alvo de racismo. Não compro esse argumento, mas tenho certeza que parte da elite paulistana ficava meio puta de ter um "patrício da cor" no Palácio das Indústrias (antiga sede da prefeitura de SP).

Mas voltemos ao Troféu Raça Negra... Essas premiações não são algo novo no meio da negrada. Também Abdias do Nascimento, nos anos 1940 no Rio, organizava através do seu Teatro Experimental do Negro (TEN) eventos políticos/sociais que homenageavam personalidades negras e brancas devotadas a causa negra. Nascimento chegou a eleger Jael de Oliveira Lima, empresário branco e financiador de várias atividades do TEN, o "Amigo Número Um do Negro" nos anos 1940. Esses conclaves tinham e tem várias funções. Criar coalizões com políticos brancos, dar mostras que a comunidade negra também possui suas personalidades, elite, classe média - base política potencialmente de peso no processo eleitoral - e adicionar
glamour e honrarias sociais que legitimem o lugar e a distinção desses grupos no seio da população negra. É um processo contínuo misto de invenção de tradição, como demonstra o historiador inglês Eric J. Hobsbawn, com estabelecimento de distinção/estilo de vida (meio capenga)
a la Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês. Quando digo que é "meio capenga" faço referência a situação de precariedade que a população negra muitas vezes vive, mas algo que não tira as aspirações de muitos em atingir um padrão de consumo e vida de classe média ou alta enquanto que Bourdieu afirma que os traços de classe que trazemos são "disposições incorporadas" produto do
habitus. Em termos mais humanos, se você nasceu favela sempre favela, se nasceu classe média vai morrer classe média nos modos, consumo e estilos de vida. No caso da negrada, uma tentativa de quebrar essa lógica pode ser visto nos "bailes nostalgia" que tem o
dress code,
sport chic: sapatos, camisa social e calças mais formais de preferência evitando
jeans. Junte-se a isso a uma certo
glamour e pomposidade dos lugares em que eram/são realizados os bailes como Casa de Portugal, na Liberdade, e Club Homis, na Avenida Paulista. Não faltam histórias engraçadas... Uma clássica é da galera que ia de ônibus ou metrô até o início da Paulista, mas para meter um classe ao chegar no baile, pegava um táxi para fazer o resto do trajeto e chegar no estilo na porta da balada.
O
Troféu Raça Negra me lembra um pouco disso. A criação do estilo de vida e
glamour na precariedade, algo que não deixa de ter sua necessidade sócio/política em meio a um certo ar cômico. Contudo, dúvido que Celso Pitta (1946-2009) será homenageado postumamente pela rapaziada da
Afrobras. O que teria a oferecer o economista carioca, cuja administração de São Paulo foi uma das mais desastrosas de todos os tempos, além do título de primeiro prefeito negro da cidade de São Paulo? Novamente, raça é estratégica na política e aqui Pitta deve ser, mais do que nunca, evitado. De qualquer modo, Celso Pitta
REST IN PEACE! Afinal, você também foi negrão...
Veja a trajetória do "homi"
AQUI