segunda-feira, 19 de abril de 2010

Linda e Reflexiva Nina...


 

Domingão é o dia da preguiça que os FDPs do Faustão e Silvio Santos (não esqueçamos do Gugu Liberato também) transformaram numa bosta em Brazilian lands. Nos EUA, pra negrada, é dia de ir à igreja entre a manhã e o início da tarde para em seguida se debruçar na glutonaria do brunch (breakfast [café da manhã] + lunch [almoço]). A canção Easy do grupo The Commodores, interpretada brilhantemente na voz de Lionel Ritchie, consegue capturar a preguiça e delícia dos domingos: "Ooh, that's why I am easy/Easy like a Sunday morning". Lembro de minhas manhãs dominicais em SP saindo da cama no começo da tarde e, depois de fazer um amorzinho "gotozinhu" com a ex-primeira dama, ir tomar café na padaria lendo a merda do Estadão, ficar com raiva ao ver a capa da Veja (que mentira!) na banca de jornal da esquina,  dar comida pro Martin (nosso gato vagabundo) e se jogar no sofá pra ler algum livro e decidir qual o sabor da pizza a comer no jantar... Enfim, gula, luxúria e preguiça - pecados capitais - são, de certa forma, socialmente permitidas no primeiro dia da semana. Aproveite...

Mas aqui em New York Shit geralmente gasto meus domingos na Bosta, opa, Bobst Library (NYU) lendo autores chatos de sociologia. Aliás, como a sociologia é chata, hein meu povo?! Hoje, entretanto, mudei de rotina e fiquei em casa em meu dia de Dona Maria ou Amélia: lavando roupa, limpando quarto (achei o controle remoto da TV que estava sumido há uma semana) e fuçando na Internet. E foi xeretando no blog de minha truta Fabiana Lima, o SoulSista, que encontrei outro blog, o Belezas Negras, onde me deparei com essa imagem simplesmente maravilhosa da cantora e pianista de jazz Nina Simone (1933-2003) que coloquei como abertura do post. Muitas coisas vieram a minha cabeça e tentarei organizar algumas aqui...

 http://www.kriso.ee/covers/large/978037/9780375424014.jpg

O post do blog fazia referência a uma biografia (imagem acima) de Nina recentemente lançada nos EUA e remetia a uma resenha do livro publicada no Estadão (leia AQUI), notícia que eu, coincidentemente, havia "tuitado" semanas atrás. Na verdade, conhecia o livro antes da publicação da resenha do jornalão brasileiro uma vez que nas minhas visitas e xeretadas a livraria Barnes & Noble da 18th Street (onde compro parte dos meus livros) havia topado com a obra. Entretanto, confesso que fiquei meio incomodado com o texto devido a alguns motivos bem específicos. A capa é linda e chamativa, mas ao virar o livro topei com a foto da escritora, uma tiazona loira na casa dos 50 anos. Meus/Minhas amig@s/leitore/as branc@s sejam compreensivos nesse aspecto. Admito que às vezes me limito com essa perspectiva bitoladora de enxergar todas as coisas meio que divididas entre preto e branco. Mas o que estava por trás de meu incômodo era também algo pessoal. Explico-me...

 http://respectable.files.wordpress.com/2009/05/nina-simone-2.jpg

A música de Nina Simone tem sido mais que especial para mim nos últimos tempos. Quando vi a capa do livro lembrei imediatamente de músicas que costumava ouvir - como Solitude e Nobody - meses atrás em meu iPhone no metrô durante minha viagem de volta para casa às três da manhã depois de um dia de trabalho na biblioteca. A música de Nina é para mim a cristalização de momentos de solidão, reflexão e mudança e, por conta disso, sua música tem um significado bastante especial em minha trajetória. Por outro lado, não há como sentir uma certa repulsa/desdém de ver autore/as branc@s escrevendo sobre artistas negr@s, como se rolasse uma espécie de espoliação. Esse é o mesmo sentimento que tenho quando olho para a biografia de Tim Maia escrita pelo jornalista Nelson Motta em 2006 (Vale Tudo: o som e a fúria de Tim Maia, Editora Objetiva [leia minha resenha do livro AQUI]).

Desse modo, espero que esse sentimento não seja lido pelos leitore/as do inbrog como uma forma de preconceito de minha parte, mas sim da perspectiva de alguém cuja a música desses artistas tem um significado que vai muito além do entretenimento se materializando em algo político.  Conjuntamente a isso há de minha parte uma preocupação de que o trabalho desses escritores, ao se abster de uma discussão política/racial do contexto no qual essas figuras negras estão envolvidas, acabem por reproduzir visões de senso comum ou estereótipos. O título do livro aqui em questão (Princess Noire: the tumultuous reign of Nina Simone, de Nadine Codonas, Pantheon Books, 464 páginas, US$ 30) lança luz sobre esse aspecto uma vez que o "tumultuado reino de Nina Simone" deve ser entendido numa perspectiva mais ampla do que significa ser negr@ e músico de jazz nos EUA entre os anos 1940 e 1960.

Não posso ir além em minha crítica, pois não li ainda o livro (pretendo fazê-lo em minhas férias no Brasil), mas o texto de Antonio Gonçalves Filho do Estadão não coloca muita enfâse em aspectos históricos, sociais e políticos mas sim psicanalíticos na formação da personalidade de Simone que, de acordo com o jornalista, é classificada como bipolar por sua biógrafa. Ora, tanto a personalidade como o self de um indivíduo não é formado num vazio social. Nessa perspectiva, boa parte dos músicos negros de jazz norte-americanos (exemplos clássicos são a cantora Billie Holiday [1915-1959] e o baixista Charles Mingus [1922-1979]) poderiam ser classificados como bipolares. Minha crítica é: personalidades só podem ser entendidas numa mediação entre a trajetória pessoal do indivíduo e a estrutura social e conjuntura histórica da sociedade na qual o/a mesmo/a está inserido. Digo isso influenciado por dois autores um deles escritor/ensaísta e o outro sociólogo: Norman Mailer (1923-2007) e Norbert Elias (1897-1990).

Mailer era americano e judeu e o texto ao qual me refiro aqui é o ensaio The White Negro (1957). Nesse pequeno texto Mailer desvenda a psicologia dos hipsters: brancos considerados desviantes no anos 1940/1950 por não incorporarem os valores da sociedade americana da época levando um estilo de vida hedonista com uso de drogas (maconha) e apego ao presente (o termo hipster atualmente tem similaridades e diferenças em relação a essa primeira definição). O autor classifica o hipster como um "white negro" (branco negro) já que negros seriam os originais hipsters devido a sua situação de precariedade nos EUA.

Negros teriam desenvolvido um psicologia e personalidade de apego ao presente uma vez que, por conta do racismo e da segregação, não haveria possibilidade de se realizar planos futuros numa sociedade onde sua vida estaria por um fio durante todo o tempo. Em outras palavras, os negros haviam desenvolvido uma espécie de existencialismo devido sua consciência de que a violência contra o mesmo era uma possibilidade existente de forma onipresente. Nessa perspectiva a exacerbação dos prazeres sensorias através do sexo, bebidas, drogas, dança e música (vindos do jazz) vividas sempre de forma intensa no presente era a compensação para a frustante experiência que impossibilitava o desenvolvimento de projetos futuros. Uma leitura freudiana e existencialista da experiência negra incorporada e materializada em brancos norte-americanos como o sex symbol do filme Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955), James Dean (1931-1955), ou o ator Marlon Brandon (1924-2004), figuras que carregavam a negrofobia tão presente no universo norte-americano, ou seja, um misto de medo, curiosidade e desejo pela sexualidade dos negros.

Elias, judeu e alemão, dispensa apresentação aos mais antenados em ciências sociais. Sua obra mais famosa é o livro O Processo Civilizador (1995) onde o autor mostra como sociedades européias passaram por um processo no qual a violência, tão presente nas sociedades guerreiras, foi aos poucos sendo amenizada com a ascensão das sociedades de corte e do processo de formação do estado-nação. Nessa perspectiva, hábitos tão naturalizados por nós hoje como comer com faca e garfo ou soar o nariz, são entendidos como produto de mudança histórica e internalização de restrições sociais por parte dos indivíduos. Contudo, o que Elias evidencia é que, baseando em Sigmund Freud (1856-1939) e em outros autores da psicanálise/psicologia, a personalidade dos indivíduos é moldada nesse processo e a estrutura social da sociedade pode ser observada nos mesmos por meio do habitus, ou seja, disposições das estruturas incorporadas na maneira como agimos, falamos e até pensamos. Esse aspecto fica evidente em seu livro sobre o músico Wolfgang Amadeu Mozart (1756-1791), Mozart: sociologia de um gênio (1994), no qual ele evidencia como a personalidade, arte, genialidade e fracasso do artista a sua época podem ser entendidas através de uma perspectiva sociológica que considere essa relação entre processo civilizador, estrutura social, habitus e tempo histórico. A personalidade desviante de negros norte-americana, observada por Mailer, seria chamada de habitus por parte de Elias, mas ambas as análises estão calcadas em elementos psicológicos, históricos e sociais.

http://todopera.files.wordpress.com/2009/08/mozart2.jpg

Tudo isso me faz chegar a conclusão que simplesmente alegar numa biografia que o biografado é "bipolar" é extremamente simples e cômodo por parte do biográfo uma vez que resolve problemas complexos que são difíceis de se explicar ao leitor mediano. Contudo, faço meia culpa ao meu incômodo por Codonas ser branca e escrever sobre uma artista negra. Percebi que não estava sendo razoável com a autora uma vez que há dois aspectos que devem ser considerados no sentido de relativizar minha posição de certa forma equivocada. A primeira coisa a ser dita diz respeito a elitização que o jazz sofreu nos EUA. O grande público consumidor desse gênero musical (e outro produtos relacionados a ele) é branco, americano e/ou estrangeiro e de classe alta. A audiência negra do jazz é pequena, algo que tem impacto na formação de músicos, crítica especializada e escritores negros voltados para esse segmento musical. A molecada preta que sai das faculdades de comunicação entende muito mais de Notorious BIG (1972-1997) do que Miles Davis (1926-1991) ou John Coltrane (1926-1967) que são músicos que seus avós ouviam. O segundo ponto é que há ótimos livros de jazz escritos por autores brancos como Kind of Blue: a história da obra-prima de Miles Davis (2007) e A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane (2007) ambos de Ashley Kahn e With Billie (2005) de Julia Blackburn.
 http://bachelorettefiles.files.wordpress.com/2010/02/ninasimone.jpg
Por fim, uma última palavra sobre a foto que abre esse post. A foto é de uma beleza absurda uma vez que a nudez de Simone é singela. Ela era uma negra que não se enquadrava no padrão estética valorizado na comunidade negra com sua pele escura (dark skinned) e nem era considerada uma mulher bonita e sexy quando comparada a Billie Holiday. Por outro lado, outras cantoras de jazz, como Ella Fitzgerald (1917-1996) e Sarah Vaughan (1924-1990), eram apresentadas quase como que assexuadas pela mídia devido a força da imagem de Billie. Assim sendo, a representação da mulher negra varia entre dois extremos: de um lado, a sexualidade exacerbada e traiçoeira de Jezebel e, de outro, a sexualidade reprimida e subserviente da Big Mama (se pensarmos em termos de Brasil, poderíamos colocar como correspondentes deste imaginário Rita Baiana, personagem do livro de Aluízio Azevedo [1857-1913], O Cortiço [1890], e a figura da Mãe Preta).  Contudo, Nina nessa foto evidencia sua nudez e sexualidade de forma humana, livre de estereótipos ao jogar o rosto de lado e fechar os olhos não se importando com aqueles que olham porque o corpo pertence a ela. Seu corpo, sua música, sua sexualidade e sua vida em sua maior e melhor beleza, negritude e humanidade...

Muita Paz e Boa Semana!

PS: tiro férias do inbrog a partir de hoje devendo voltar a escrever somente na segunda metade de maio. É final de semestre por aqui e a loucura e correria chegaram com força total!