quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Racismo e Percepção Estética

Maria Paula Adinolfi é minha amiga de longa data. Vivemos juntos as barras e perengues do mestrado, de morar no CRUSPão (Conjunto Residencial da USP e fábrica de loucos) e agora curtimos o exílio. Atualmente, o Atlântico Negro, termo de Paul Gilroy, infelizmente nos separa uma vez que ela encontra-se na Holanda fazendo seu PhD em antropologia no Centre for Comparative Social Studies da Vrije (CCSS) na Universidade de Amsterdam. O texto que segue abaixo é de sua autoria e fico lisonjeado que ela o tenha escrito especialmente para o NewYorKibe. Vou zoar um pouco e dizer que o título do texto deveria ser "Mussum, Gato Preto!", mas deixo vocês descobrirem o porquê. De quebra, o post também serve de homenagem a Mãe Hilda, matriarca do Ilê Ayê, que faleceu na semana passada. Que Mãe Hilda descanse em paz e, como disse meu truta Professor Doutor Batista (outro negrão "foderoso"!), fortaleça ainda mais o nosso axé!

RACISMO E PERCEPÇÃO ESTÉTICA

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Todo mundo sabe que o racismo nos impede de olhar direito pras pessoas e pras coisas. Muitos ativistas/intelectuais negros vêm discutindo como o racismo deforma o olhar, embota a percepção e classifica como "feio" tudo que não se enquadra em um certo padrão - branco - de beleza hegemônica. Eu, como branca paulistana de classe média falida, fui nascida e criada em um ambiente (familiar/escolar) que, ainda que não se proclamando abertamente racista, era evidentemente imbuído deste padrão. Ele se aplica indistintamente a objetos e pessoas: coisas "de preto" não eram vistas como bonitas, nem roupas, nem acessórios, nem objetos das casas (que eu pouco conhecia, pra falar a verdade), nem cabelos, nem rostos, nem corpo.

Cresci, fui estudar e, depois que comecei a me dedicar a pesquisar isso que a gente chama de "cultura afro-brasileira", comecei a reeducar meu olhar. Ou foi um impulso estético que me levou a essa pesquisa? Um reconhecimento da beleza encarcerada por trás dos padrões estéticos estreitos e enviezados? Sim, na verdade foi mais isso, mas fui pega a princípio não pela visão - o mais colonizado dos sentidos - mas pela sinestesia da capoeira: vários sentidos envolvidos ao mesmo tempo na música, canto, performance. Mas, sim, sobretudo lá estava o corpo negro, o corpo do homem negro. Não só se mostrando lindo, plástico, "voador", desafiador da gravidade, rítmico. mas também transpirando, gotejando odores e sabores que logo... me enlouqueceram.

Ah, mas este fascínio é parte inseparável do "pacote" colonial: toda inferiorização traz consigo o fascínio fetichista para com o corpo daquele "OUTRO", e esse tesão que arrepiou meu corpinho branco não é nenhuma novidade, nem significa automaticamente a desmontagem do preconceito. Em alguns casos, especialmente de homens brancos com mulheres negras, este tesão só faz do corpo da mulher negra objeto, portanto, como a gente sabe, o argumento "não sou racista porque namoro uma negra" em muitos casos é uma sonora bobagem. Pra mim, o fascínio da capoeira, e do corpo negro na capoeira, foi o início de uma jornada que transformou minha vida, me fez repensar meus valores, me realinhou no mundo, me reposicionou politicamente - e me definiu profissionalmente também. Mas a reeducação do olhar teve de prosseguir, e cada vez mais me interessei pessoalmente e analiticamente pela "estética afro-brasileira" - manifestada tanto nos objetos como nas pessoas.

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Mas o que me levou a escrever isso aqui e "invadir" o blog do Kibão (que trata sempre deste tema, por isso achei que seria um espaço legal pra escrever sobre isso) é contar que acabei de assisitir no YouTube um vídeo dos Originais do Samba, de 1972, e - a despeito de toda a minha reeducação estética dos últimos 15 anos - me assustei: aquele cara lindo é o Mussum??? 1972 foi o ano em que nasci, e cresci, como muitos da minha geração, ligando sua imagem não à de um grande sambista, mas à do "negro boçal" que ele encarnava no programa Os Trapalhões. Não cabe aqui perder muito tempo falando dos estereótipos nos programas de humor brasileiros: todo mundo sabe que nenhum passaria no mais primário teste de politicamente correto. O fato é que, como nunca voltei a ver o Mussum depois da infância (nem mesmo agora quando comemoraram seu aniversário de morte), permanecia na minha cabeça a imagem do negro cachaceiro, vagabundo, ignorante, meio idiota e... feio. Olhos sempre meio esbugalhados ou vesgos, boca escancarada, roupas esculhambadas, e aquele jeito de falar que não só incomodava pelo desvio completo do padrão normativo, naquele "idioma" que nunca exisitiu em lugar nenhum nem na boca de ninguém, mas por produzir uma voz meio estridente, meio irritante. Aquilo era desenhado especialmente pra produzir na audiência branca um misto de condescendência, ridicularização, comiseração, superioridade, deboche. Em suma, para reiterar os regimes estéticos e (anti)éticos do racismo.

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Foi difícil, nos primeiros segundos, associar aquela imagem da infância, guardada em algum canto da minha cabeça, com aquele homem de olhos vivos, pele perfeita, boca carnuda, voz sensual, dentes lindos. E muito, muito carisma, humor irônico, fala fluida, vivacidade, inteligência. E, diga-se de passagem, perfeito domínio da norma culta da língua portuguesa (não que eu ache isso um valor em si. O que incomoda é ser sempre o negro a ser mostrado como aquele que não sabe usar a norma culta). Juro que tive que assistir duas vezes pra me convencer do óbvio: era mesmo o Mussum.

Depois do espanto, a raiva: com que direito a TV, a escola, os pais deformaram meu senso de apreciação estética, operando um verdadeiro milagre de transfiguração, um passe de mágica perverso, tranformando aquele homem lindo e interessante em uma caricatura patética? Pior (bem, melhor pra mim...) é pensar que eu ainda consegui, de alguma forma, romper este círculo e passar a ver. Mas tenho certeza que uma grande maioria de pessoas da minha geração continuam a se lembrar dele daquela forma deturpada, tanto pela personagem que lhe fizeram encarnar, como pela falta de educação que não lhes permite, ainda hoje, reavaliar seus padrões. Mais triste ainda, esta forma de (não) ver não se restringe, evidentemente, a um único indivíduo, mas a todos os brasileiros que têm fenótipo negro, que são maioria neste país.

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Tudo bem, era um personagem e coisa e tal, talvez seja até babaquice minha identificar ator e personagem, talvez eu esteja me comportando como quem bate nos atores que fazem vilões nas novelas quando os encontram na rua. Mas o fato é que Os Trapalhões não era uma novela, os espectadores, pela "ilusão realista", eram induzidos a pensar nos personagens como reais, ou mais que reais: como arquétipos do negro, do nordestino, do mineiro viado e do espertalhão carioca boa pinta!

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Sou otimista, apesar de tudo. Acho que os negros têm tido sucesso na desconstrução da estética hegemônica branca e na pluralização das formas de apreciar a beleza. Ainda há, é evidente, um longo caminho a ser trilhado. Mas hoje é, não direi impensável, mas muito improvável que um programa de grande audiência faça um negro encarnar um tal tipo de personagem (bem, relembrando de Lázaro Ramos na última novela, como Foguinho, me faz ser mais moderada em minhas palavras...). Mas se de toda forma há uma reversão daquele padrão isso se dá não só por imperativos do mercado, porque hoje descobriram que negro é consumidor, etc mas porque, em primeiro lugar, haverá protesto. De indivíduos e instituições organizados para se opor a isso.

E aproveito pra concluir o post homenageando uma liderança negra que foi mentora de uma das instituições que mais fortemente contribuíram para instituir uma mudança de paradigma em relação à estética negra, o Ilê Aiyê. O Ilê mostrou pra Bahia, pro Brasil e pro mundo que negro é lindo. Quem, antes do Ilê, cantaria "Branco se vc soubesse/ o valor que o negro tem/ tu tomava banho de pixe/ pra ficar negão também"? Eles abriram o sendeiro pra hoje Racionais poderem dizer (para os brancos, "senhor de engenho"): "inacreditável mas seu filho me imita/ no meio de vocês ele é o mais esperto/ ginga e fala gíria, gíria não, dialeto/ esse não é mais seu/ há, subiu/ Entrei pelo rádio, tomei, cê nem viu/ nóis é isso, é aquilo... / cê não dizia/ seu filho quer ser preto/ há, que ironia!!".

Corre-se o risco, claro, da estética negra, que hoje tá virando "moda", que o playboy branco curte, se tornar só mais uma mercadoria. Mas existe outro destino para os objetos no capitalismo? Bem, isso já é tema pra outras discussões. Por hora, quero dar um salve a Mãe Hilda Jitolu, ialorixá, mãe, mulher digna, baluarte do Ilê Aiyê, falecida no sábado 19/09/2009. Axé, Mãe, continue a zelar por nós do Orun! E um salve ao saudoso Mussum, aquele gato!

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(Mãe Hilda, 1923-2009)

Paz a tod@s!

5 comentários:

Janaína Leslão disse...

ótimo texto, ótimas reflexões!! eu tb não sabia que o gato preto era dos originais do samba!! hehe
abraços ao kibe e a autora! hehe

Raque Souzas disse...

Oi interessante essa perspectiva. Viram o filme de Raquel Gerber?ORI?
O Batistão aparece novinho. Tá um tremendo gato, assim como outros filmados por Raquel Gerber.
abraços

Márcio Macedo disse...

Prezadas Janaína e Raquel,

Obrigadinho pela leitura e comentários.

Raquel, sobre o filme, infelizmente ainda não consegui assistir (ainda mais agora que o filme foi restaurado). Mas vou conseguir, tenho certeza. Batistão continua style, agora de dreadlocks grisalhos a la Vovo do Ilê Aye.

Abraço forte as duas moças!

Márcio/Kibe.

Unknown disse...

História. Ela sempre muda a nossa percepção de mundo. E informação é poder. Assim como você agora entendi o culto ao Mussum. Tornar-se aquele personagem matou ele aos poucos.

Ivana Braga disse...

Cheguei a este texto numa pesquisa sobre estética e racismo no google. Muito relevantes suas percepções. Obrigada