terça-feira, 22 de setembro de 2009

Caster Semenya e as Armadilhas da Definição

http://i.dailymail.co.uk/i/pix/2009/08/25/article-1208887-062D8796000005DC-869_634x404.jpg

Caster Semenya está na boca do povo. A atleta sul-africana é pivô de uma polêmica que aponta de maneira magistral uma intersecção entre política, biologia e cultura que até bem pouco tempo era assunto apenas de seminários acadêmicos. Talvez por lidar com questões tão delicadas, seu caso tem sido tratado de forma sensacionalista e muitos equívocos podem ser vistos nos noticiários veiculados na imprensa. Tudo teve início após a corredora de 18 anos vencer a prova dos 800 metros no mundial de atletismo ocorrido mês passado em Berlim. Entretanto, após a prova, a mesma foi submetida a uma série de testes que comprovaram que Semenya é hermafrodita, ou seja, possue os dois sexos.

Dias atrás vi um manchete num portal de notícias da internet afirmando que a Federação Internacional de Atletismo iria, dentro de algumas semanas, estar apta a confirmar o "gênero" da corredora. As perguntas são como, por que e para que? Antropólogos e ativistas de movimentos gays devem estar se remexendo nas cadeiras - vale a pena ler o post de minha amiga Isadora Lins no blog Ingrediente Desviante -, mas a verdade é que a maior parte das pessoas não tem uma clara noção de onde esse debate ecoa ou qual é a sua relação com a nossa vida cotidiana.

South Africa's teenage 800 metres world champion Caster Semenya gestures to her fans at the O.R Tambo international airport in Johannesburg

A polêmica me fez lembrar de um pequeno texto escrito por meu amigo e professor de antropologia na Universidade de São Paulo (USP) Júlio Simões. Nele o pesquisador ensina como categorias como gênero, sexo e orientação sexual, que formam e dão a dinâmica da sexualidade, são naturalizadas e vistas de ponto de vista normativo. Explico-me... As três primeiras categorias são sempre relacionadas pelos indíviduos de modo a experienciar sua sexualidade, mas elas não são estáticas e as combinações podem ser várias. Em outras palavras, tendemos a olhar, na maioria das vezes, para essas categorias como fechadas e relacionando-se entre si de forma bastante simplória quando na verdade as possibilidades de combinação são múltiplas.

O problema na afirmação da imprensa de que seria possível definir o gênero da corredora esbarra em duas confusões. Primeiro que gênero (masculino/feminino) é um construto sócio, político e simbólico. É mais correto dizer que as pessoas "realizam uma performance" do que "tem" um gênero em si. Alguns são mais masculinizados e outros são mais feminilizados, algo que indendepe da varíavel fisiológica: sexo (homem/mulher). Alguns historiadores, como aponta Simões, defendem que até mesmo a categoria sexo é um construto histórico, uma vez que em determinadas épocas não haviam uma distinção clara entre homens e mulheres e distinções no equipamento fisiológico não eram levados em consideração.

Orientação sexual (heterossexual, homossexual e bissexual) também não são categorias fechadas e estáticas. No relato das pessoas sempre há a enfâse em umas das três, mas a verdade é que, de acordo com os especialistas, não existe a certeza dessa rigidez no que diz respeito a nossa vivência cotidiana. Orientação sexual (assim como gênero e sexo) nos fornece uma identidade de forma a viver nossa vida sexual, entretanto, identidade está inserido num processo dinâmico de eterna construção, ou seja, não é algo estático e ainda há fatores políticos envolvidos. Há algum tempo atrás, li num jornal que determinados grupos de defesa dos direitos dos homossexuais estava defendendo a noção de que a orientação sexual seria algo inato, ou seja, característica com o qual o indivíduo nasceria. Entretanto, essa era uma estratégia que visava fazer frente a atitude de alguns pastores de igrejas evangélicas que prometiam a "cura" de homossexuais através da conversão para a heterossexualidade.

Mas aí você deve estar se perguntando: que diabos tudo isso tem haver com o caso de Semenya e das pessoas comuns? Boa parte de nossa relação com o Estado é mediado por categorias reificadas de homem/mulher, negro/branco entre outras. Isso garante acesso/restrições a determinados direitos e deveres. No caso de Semenya, entretanto, a discussão toda se baseia numa crença de que há clara determinação entre sexo (homem/mulher) e desempenho físico. Os argumentos para tal afirmação, como demonstram os testes feitos na corredora, vem da biologia: níveis de testoreno/progesterona presentes no corpo, existência ou não de orgãos sexuais (vagina/pênis) e reprodutivos (ovário). Todavia, tudo isso não faz sentido sem uma referência simbólica que vem de uma interpretação cultural do equipamento bio/fisiológico. Ou seja, o fato de ser homem/mulher é mediado por categorias culturais de interpretação. No limite, pode-se afirmar que a atitude da FIA, em servir como a instituição que definirá o sexo da corredora, é no mínimo autoritária, uma vez que infrige o direito da corredora de se auto-definir.

As perguntas que ficam são várias. 1) Qual o papel tocado pela relação entre biologia e cultura na constituição dos indivíduos? 2) Que direito tem as instituições em geral - Estado, por exemplo - em nos definir seja como homens, mulheres, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais etc? 3) Qual o impacto disso do ponto de vista político?

Não há respostas finais para as questões e a discussão encontra-se em aberto, mas de uma coisa tenho certeza: a última coisa que tem sido levada em consideração no caso de Semenya é o livre arbítrio e subjetividade da atleta. Ninguém, até agora, falou delas. Esse aspecto nos fornece uma idéia do lugar do "pessoal" nessa polêmica.

Muita Paz e Serenidade à jovem Semenya!

9 comentários:

Isadora disse...

legal, Kibe! eu escrevi um artigo sobre o caso da Edinanci, semelhante ao caso de Semenya, e como ele foi visto na mídia, que estou linkando lá no meu post.
beijos!

Jaqueline disse...

Legal a reflexão que você trás nessa postagem, vamos torcer para que seja levada em consideração a escolha de Semenya sobre sua própria vida e sucesso na sua trajetória esportiva.

Márcio Macedo disse...

Firmeza Isa,

Vou tentar disponibilizar o link quando publicar sua entrevista pro CLAM, ok!

Beijos,

Márcio/Kibe.

Márcio Macedo disse...

Jac,

Obrigado pela leitura. Pois é, Caster vai necessitar de muita serenidade mesmo.

Beijos,

Márcio/Kibe.

Anônimo disse...

Kibe, aqui é Surya, sua ex-colega do curso do Antonio Sérgio no mestrado aaaaanos atrás... achei seu blog meio sem querer (num comentário no do L.F.Alencastro) e tenho acompanhado, achando bem legal sua experiência nos eua e debates em geral. queria a indicação desse texto do Julio Simões, vc tem? eu estou morando na Paraíba, dando aula na UFPB (pedagogia e licenciaturas) e este semestre estou com uma disciplina que é ed. e diversidade cultural, um horror, passo mal toda semana com a estreiteza dos alunos... como fui obrigada a discutir escola e relações raciais e escola e questões de gênero na mesma disciplina (missão impossível...), dividi metade pra cada tema, lógico que com intersecção entre eles... enfim, queria usar esse texto! beijos e prazer em te reencontrar (no espaço virtual, mas isso é muito normal, né?).

Surya

Márcio Macedo disse...

Hi Surya,

Muito legal te reencontrar! Olha só, devo ter o artigo do Júlio, mas em um outro computador meu. Vou dar uma procurada e te mando sim. Mas me passa o seu email, ok?!

Beijos,

Márcio/Kibe.

Ari disse...

NUm entendi bulhufas, já que a discussão não passa por nenhuma orientação sexual da corredora, mas sim pelos genes dela. Trata-se apenas de que, modo geral, atletas homens correm mais que atletas mulheres, daí não ser fair play nenhum botar alguém que poderia ser geneticamente do sexo masculino entre atletas do sexo feminino, independente das orientações sexuais de cada um. Como vc é um coach potato, vai ver que num pesca o problema, sei lá. Se ela ficar entre os homens, corre menos que eles. Se ficar entre as mulheres, vai correr mais. Um caso complicado, mas o que tem a ver com orientação sexual me escapa completamente...

Márcio Macedo disse...

Prezado Ari,

Você cursou filsofofia ou biologia? Ultimamente anda tão defensor dos genes que tô começando a achar que teve bolsa da Fapesp no Projeto Genoma durante seu doutorado na USP. A única coisa que diz dizer é que mesmo categorias vistas como essencialmente biológicas (homem/mulher) dependem de interpretações culturais para serem validadas. Orientação sexual não está em foque na discussão da corredora, mas eu inclui a mesma simplesmente para explicar meu ponto. Como você sabe que homens correm mais do que mulheres? Eu não teria tanta certeza, meu caro!

Abraços do coach potato,

Márcio/Kibe.

Ari disse...

Bom, vc não acompanha esportes, então. E eu escrevi de modo geral atletas masculinos correm mais que as femininas, o que qualquer mínimo conhceimento do mundo dos esportes lhe daria. E, não, não defendo genes, apenas tenho sobre isso (também) uma aproximação política. Você adora tratar de assuntos sobre os quais, obviamente, não entende bulhufas, mas sempre com uma aproximação política. Veja o caso da corredora, que tratou como caso de orientação sexual, misturando alhos e bugalhos, pondo na roda identidades sexuais culturais misturada com especificidades orgânicas. Francamente, o "genético" aqui está sendo você, não eu. Simples: pergunta prá corredora se ela quer correr entre os atletas... Vá ver as diferenças de tempo entre atletas de ponta de ambos os sexos em algumas (não todas) modadlidades. Outra coisa, o caso da moça é natural, mas não é essa mesma a questão: se não for definidada, a nível científico, quem é mulher ou homem fisicamente, de novo vai ocorrer qo eu já ocorreu antes: meninas entupidas de hormônios masculinos, para poderem nadar mais, correr mais, pular mais. Nunca ouviu falar da Alemanha Oriental e suas nadadoras, não? Talvez vc aprecie a idéia de uma geléia geral sexual trazida por injeções de hormônios, eu não. Eu por mim levo em conta as lamentações das ex-nadadoras, que não podiam ter filhos, devido aos tratamentos aos quais tinham sido submetidas. E você?