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Prezad@s,
O post abaixo foi publicado no site do CLAM Divirtam-se!
A ser lançado no dia 30 de setembro, na sede da Clacso, em Buenos Aires (Avenida Callao, 875, 4º andar), no dia 21 de outubro em São Paulo e em 9 de novembro no Rio de Janeiro, o livro “Prazeres Dissidentes” (CLAM/Editora Garamond), organizado por Maria Elvira Diaz-Benitez e Carlos Figari, aborda temáticas como pornografia, escatologia, barebacking, travestilidades, pedofilia, BDSM, incesto consentido, crossdressing, prostituição, homoerotismos e sociabilidades fluidas, tradicionalmente interpretadas como perversões. Leia abaixo resenha assinada por Adriana Piscitelli (Unicamp).
PRAZERES DISSIDENTES
A coletânea "Prazeres dissidentes", resultado de recentes estudos realizados por jovens pesquisadores latino-americanos, é expressão da efervescência da produção sobre o tema na região. Combinando criatividade e reflexão crítica, os artigos consideram recortes ainda pouco pesquisados ou contemplados em novas abordagens. Em 2003, o Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) e o PAGU (Unicamp) organizaram o Seminário “Sexualidades e Saberes, Convenções e Fronteiras”. Nesse encontro se teceram reflexões sobre o estado do campo de estudos e foram esboçadas ideias para superar alguns impasses na produção sobre o tema. Um dos principais pontos levantados referiu-se às fundamentais contribuições do arcabouço teórico de Foucault, mas também a problemas relativos a aspectos teóricos e a efeitos políticos da utilização desse referencial, levantados por autores/as feministas e vinculados ao movimento homossexual.
Um segundo ponto foi a relevância concedida à separação analítica entre gênero e sexualidade, considerada útil para mapear a “estratificação sexual” presente nas sociedades modernas, que estabelece limites entre práticas sexuais “boas” e “más”, inferiorizando indivíduos e grupos vinculados às últimas. Contudo, percebíamos que algumas linhas dos estudos “queer” ignoravam gênero, enquanto abordagens sobre heterossexualidades consideravam a articulação entre gênero e sexualidade, mas em uma perspectiva na qual o gênero aparecia frequentemente aprisionado em uma distinção binária. A sexualidade tendia a aparecer atravessada por uma fronteira clara entre homens e mulheres, e se estabelecia uma continuidade entre “sexo” e gênero.
Finalmente, um terceiro ponto foi a relevância das negociações a respeito da “normalização” de práticas sexuais que foram objeto de intensa rejeição no passado, como o adultério, a masturbação, a pornografia, a prostituição, a sodomia e o homoerotismo. Entretanto, tais negociações articulavam-se simultaneamente à “criminalização” de outras práticas. Nós perguntávamos então sobre as convenções que compõem essa normalização e a criminalização de práticas que, embora envolvam questões relativas ao direito da livre expressão da sexualidade, provocam intensas reações.
Os textos reunidos no livro “Prazeres Dissidentes” contribuem para pensar sobre como essas questões foram sendo elaboradas durante os anos transcorridos desde a realização daquele seminário até os dias de hoje. Os autores que consideramos clássicos no tratamento do erotismo e da sexualidade – Georges Bataille e Michel Foucault – continuam sendo revisitados. A eles adiciona-se Judith Butler, uma das principais e mais influentes epistemólogas dos estudos sobre gênero e sexualidade. Entretanto, os argumentos desses autores são confrontados a partir de leituras novas e críticas. Essa abordagem está presente no artigo inaugural da coletânea, de Vitor Grunvald: “Butler, a abjeção e seu esgotamento”, no qual as formulações dessa autora são discutidas à luz de teorias feministas, filosóficas e antropológicas.
Considerando esse conjunto de leituras, os textos deste livro apontam para uma instigante diversidade em termos de convenções de erotismo. No artigo “Retratos de uma orgia: a efervescência do sexo no pornô”, de Maria Elvira Diaz-Benitez (uma das organizadoras da coletânea), conhecidas noções de transgressão vinculadas a gênero e raça aparecem basicamente acionadas no marco da indústria do sexo, na utilização de casais inter-raciais, integrados por mulheres louras e homens negros, na pornografia “hétero” brasileira. Fora desse âmbito, o valor concedido à diferença racial nas convenções do erotismo está presente na análise, feita por Isadora França no artigo “Na ponta do pé: quando o black, o samba e o GLS se cruzam em São Paulo”, de alguns espaços frequentados por homens que se relacionam com outros homens.
Série Noah's Arc (EUA) que retrata o cotidiano de um grupo de amigos negros e homossexuais.
Vários capítulos mostram com nitidez que compreender os significados assumidos contextualmente pelo gênero requer pensar essa diferenciação, não independentemente, mas em relação com a sexualidade. Isto é evidente quando as performances de gênero são consideradas como expressão da conduta sexual, como no (aparentemente) desconcertante episódio em que uma travesti se pensa como heterossexual por gostar de transar com homens, narrado no artigo de Leandro de Oliveira, “Diversidade sexual e trocas no mercado erótico: gênero, interação e subjetividade em uma boate na periferia do Rio de Janeiro”. A relação entre sexualidade e gênero aparece, porém, com particular força, quando o gênero constitui o lugar a partir do qual outras diferenciações são inscritas nas falas a respeito da sexualidade. Vale como exemplo, entre mulheres que amam mulheres, as gradações entre “perua” e “sapatão”, que remetem a relações de poder permeadas por diferenciações de classe, cor/”raça” e geração, como mostra Regina Facchini no artigo “Entrecruzando diferenças: mulheres e (homo)sexualidades na cidade de São Paulo”.
Gênero adquire essa centralidade na produção de convenções eróticas e, nesses cenários, essa distinção também é crucial para hierarquizar, inclusive excluir, categorias de pessoas. A valorização da hipermasculinidade em espaços frequentados por homens que se relacionam com homens – mostrada no artigo “Silêncio, suor e sexo: subjetividades e diferenças em clubes para homens, de Camilo Albuquerque de Braz – associada ao desprezo em relação aos gays afeminados, “bichas, miguxos” – problematizado no artigo de Carolina Parreiras, “Fora do armário... dentro da tela: notas sobre avatares, (homo)sexualidades e erotismo a partir de uma comunidade virtual”.
A valorização do grau de feminilidade que dota um/a crossdresser de “passabilidade”, permitindo que chegue a “passar por mulher” – aspecto explorado no artigo “Negociando desejos e fantasias: corpo, gênero, sexualidade, subjetividade em homens que praticam crossdressing, de Anna Paula Vencato – e a rejeição às “masculinizadas” em círculos de mulheres que se relacionam com mulheres – enfocada no artigo de Regina Facchini, acima citado – parecem remeter, em uma linguagem de gênero, a uma contínua recriação da inferiorização e ao preconceito no campo da sexualidade. Como se a ruptura com convenções culturalmente disseminadas de aceitabilidade e “normalidade” fosse parte de um processo indissociável da produção de categorias modelares e de novas normatizações.
No artigo “Políticas e prazeres dos fluidos masculinos: barebacking, esportes de risco e terrorismo biológico”, de Esteban García, a linguagem da saúde e da vida, da doença e da prevenção é utilizada para delinear contornos que separam os “barebackers” dos praticantes do homoerotismo “seguro”. Por sua vez, Bruno Zilli mostra, no artigo “BDSM da A a Z: a despatologização através do consentimento nos “manuais” da Internet”, como os praticantes do BDSM tentam afirmar-se como “sadios” utilizando a noção de consentimento e, mediante essa noção, se distanciam de outros aderentes a essas práticas e também de outras categorias de pessoas estigmatizadas, como os pedófilos. Estes últimos, por sua vez, evocando argumentos que os grupos de interesse pedófilos desenvolveram ancorados em pesquisas acadêmicas (Hacking, 1999), traçam fronteiras entre os “boy-lovers corretos” - que amam crianças, se excitam com elas, mas controlam seus desejos - e os “verdadeiros pedófilos”, aqueles que as violentam tendo relacionamentos sexuais com elas, como discutido no artigo de Alessandro de Oliveira.Aparecem também aqueles cujas práticas sexuais estão sujeitas a um grau de coerção que tem como efeito a ausência de condições de aparição e visibilidade e impedem qualquer possibilidade de formular uma identidade “positiva”, como é o caso dos envolvidos no incesto consentido, assunto discutido no artigo “No ventre do pai. Desejos e práticas de incesto consentido”, de Carlos Figari.
No marco desse contínuo deslocamento de limites, a indústria do sexo ocupa um lugar singular. O conjunto de capítulos que, neste livro, tratam dessa indústria mostra as convenções eróticas acionadas para atrair consumidores e os aspectos que mobilizam estes últimos. A atração aparece ora vinculada a práticas que objetificam corpos masculinos para o “consumo” feminino, erotizando o deslocamento de posições de gênero, como sucede no “clube das mulheres” – mostrado no artigo de Marion Arent, “Performances de gênero em um ‘clube de mulheres’”. A atração erótica também aparece vinculada a práticas sexuais “extremas”, seja por seu caráter grupal, encontros orgiásticos (como no já citado artigo de Maria Elvira Díaz-Benítez) ou por envolver contatos sexuais tidos como particularmente sujos e/ou humilhantes – conforme discute Jorge Leite Jr, em seu trabalho “A pornografia ‘bizarra’ em três variações: a escatologia, o sexo com cigarros e o abuso facial”. Pode tratar-se do consumo de sexo comercial com seres que, como as travestis, corporificam o embaralhamento de códigos de gênero e sexualidade – como ilustra o artigo de Larissa Pelúcio, “Gozos ilegítimos: tesão, erotismo e culpa na relação sexual entre clientes e travestis que se prostituem”.
Os textos destinados à prostituição heterossexual na qual os consumidores são homens apontam, porém, para outro tipo de transgressões que é sugestivo. Nesses casos, os “clientes” aparecem, majoritariamente, como consumidores de práticas sexuais “banais”. A eventual “fantasia” que os conduz ao consumo do sexo comercial está longe de materializar-se na forma de práticas sexuais “extremadas”, embora elas também existam, segundo Elisiane Passini, autora do texto “Sexo com prostitutas: uma discussão sobre modelos de masculinos” e Sandra Nascimento Sousa, que assina o artigo “Desejos proibidos. Práticas da prostituição feminina”.
Este livro traz uma bem-vinda reflexão – aberta pelo artigo “Tu é ruim de transa: ou como etnografar contextos de sedução lésbica em duas boates GLBT do subúrbio do Rio de Janeiro”, de Andrea Lacombe – sobre o significado de estar no campo para quem realiza etnografias em espaços de encontros eróticos, em uma linha de discussão ainda pouco trabalhada no Brasil. Pensar sobre a relação entre a corporalidade do antropólogo e a dos/as demais sujeitos/as da pesquisa em espaços nos quais corpo e erotismo adquirem centralidade e nas necessárias negociações realizadas pelo/a pesquisador/a abre caminhos promissores para novas discussões sobre a ética na realização de etnografias sobre sexualidade.
Concluindo, uma última observação. Além de dialogar com a bibliografia “clássica”, particularmente sobre sexualidade e erotismo, nos capítulos que compõem este volume se estabelece uma interlocução com a produção internacional que tende a ser vinculada aos “queer studies” e com os trabalhos brasileiros sobre sexualidade. Entre eles, se destacam autores como Peter Fry (1982) e Nestor Perlongher (1987) que, estudando “homossexualidades”, se tornaram referências “clássicas” neste campo de estudos. Quando este último autor morreu, em 1992, acompanhado por apenas um punhado de amigos e colegas, sua etnografia sobre os michês no centro de São Paulo era uma referência basicamente para (as poucas) pessoas que estudavam “homossexualidades” ou prostituição. Hoje, o valor conferido a essa obra é amplamente reconhecido no campo da sexualidade em sentido amplo, e não apenas no Brasil.
A esses trabalhos se somam os de outros autores, mais recentes, como Luis Fernando Dias Duarte (2004); Maria Filomena Gregori (2003); Maria Luiza Heilborn (2004); Sérgio Carrara e Júlio Simões (2007), Richard Milskoci e Simões (2007) e muitos outros, citados em análises centradas em recortes específicos. A recorrência dessas referências aponta nitidamente para a consolidação do campo. Contudo, neste efervescente espaço de diálogo, a interlocução com referenciais teóricos feministas ainda é restrita. Ao mesmo tempo, a atenção concedida a recortes “heterossexuais” (fora do âmbito da indústria do sexo) é comparativamente menor. Esta observação é apenas um convite para novas reflexões, especulando sobre o avanço na produção de conhecimento que pode resultar do confronto com essas linhas teóricas e com recortes empíricos pouco contemplados neste campo cujo crescimento é demonstrado, de maneira brilhante, pelos capítulos deste livro.
* Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU e professora do Departamento de Antropologia Social e do Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas.
4 comentários:
Kiboa, vc conhece alguém que ainda está lutando 1968? Eu conhecei um cara que ainda lutava na Guerra Espanhola... Lendo essas coisa aí, me fez lembrar disso...O que há(agora) de dissidente nisso? Há um mercado, e legal. O que me faz pensar é que as categorias de apoderamento funcionam aqui: não é uma questão de poder fazer, mas de querer que todos gostem. Os dissidentes parecem ter um sonho único: virar main-stream...
Não tinha conhecimento dessa Arca de Noé.
Prezado Ari,
Assim como você, tendo morado no CRUSP, conheci gente que "vivia" em épocas muitas distintas e lutava guerras/lutas/revoluções das mais diversas. Entretanto, acho que a relação feita por você com o texto não faz muito sentido pra mim. O fato de existir um mercado voltado a essas formas de sexualidade não quer dizer que as várias questões relacionadas a elas estejam resolvidas. E sinceramente, não sei se todo "dissidente", quer ser mainstream. Acho que tem mais haver com um política de reconhecimento que busque combater o estigma e garantir certos direitos.
Abraço,
Márcio/Kibe.
Flávio,
Vai subir na arca? ...hahahahaha...
Abraço,
Márcio/Kibe.
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