Na terça passada li uma reportagem bastante interessante no New York Times intitulada A shaper of talent for a changing art world. O texto relatava a renovação do perfil de pessoas que trabalham no mercado de arte em New York City em meio a crise econômica seguindo a trajetória de Nicola Vassell, 30, uma ex-modelo jamaicana que atualmente é uma das diretoras da Deitch Project, uma renomada galeria de arte localizada no SoHo. Ms. Vassell, que começou trabalhando em 2005 como estagiária e dois anos depois chegou a posição de diretora, seria o resumo das mudanças que o mundo das artes em NYC sofrera nos últimos anos: negra, jovem e mulher.
Ms. Vassel trabalhou por dez anos como modelo de agências famosas e após se aposentar do trabalho na frente das câmeras de fotógrafos resolveu estudar história da arte na New York University. A arte, segundo ela, era uma paixão desde criança. Sua rotina agora é dividida entre o auxílio a artistas jovens, questões burocráticas da galeria, viagens aos grandes centros de arte mundial promovendo exposições entre outras responsabilidades. Num dos exemplos fornecidos do seu trabalho, a diretora se preparava para participar de uma reunião entre um grupo de designers da Puma e um artista de Los Angeles radicado em NYC cujo trabalho se resume a pinturas subversivas de jovens negros em porta-retratos clássicos. Tudo soa glamour e sofisticação no trabalho da diretora que na entrevista discorre sobre as possibilidades de sua carreira, sua nova família no mundo das artes, a ascendência jamaicana, a crise econômica, arrematando da seguinte forma: "If you cut out the excess and extravagance, what you'll have is a return to personal creativity, a rich creativity that has nothing to do with how much money you have. It's what many of us came into this business for."
Várias coisas vieram a minha cabeça durante minha leitura da reportagem. A primeira foi o filme Basquiat (1996), película sobre a trajetória do artista de pop arte Jean Claude Basquiat (1960-1988). Fiquei pensando nas festas, futilidades e discussões banais que assombravam o mundinho da arte nos anos oitenta e envolta do grupo de Andy Warhol (1928-1987), mentor de Basquiat. A segunda coisa que me veio a cabeça foi o livro que ganhei de uma amiga anos atrás intitulado O que eu amava, de Siri Hustvedt (Companhia das Letras, 2004). O romance é um thriller psicológico que tem como personagens principais indivíduos ligados ao mundo das artes em NYC e parte dele se passa no SoHo descrevendo o processo de gentrification dessa área. Por fim, lembrei do último livro de Paul Gilroy traduzido para o português: Entre campos: culturas, nações e o fascínio da raça (Annablume, 2007). Bem, aí você deve estar se perguntando: mas o que arte tem haver com Paul Gilroy? Explico-me...
Na minha opinião tanto Ms. Vassell como Basquiat fazem parte dessa atração e curiosidade que o senso comum e as artes possuem pelo exótico e diferente (nas palavras de Gilroy, seria o subtítulo de seu livro: "o fascínio da raça"). Se no começo do século XX negros eram trazidos de regiões distantes do continente africano para serem exibidos em zoológicos europeus, as posições de artista renomado e diretora de galeria ocupadas por negros de certa maneira ainda refletem um resquício desse imaginário. Nada mais descolado para uma galeria do que uma diretora negra. Nada é dito, mas a mensagem subliminar é interpretada pelos mais antenados. Mais: Vassell não é uma negra qualquer. Ela faz parte desse grupo dos super negros que falam inglês como primeira língua, moram em cidades globais como NYC ou Londres, foram educados em universidades renomadas, tem acesso à toda tecnologia disponível no mundo desenvolvido indo de laptops à iPhones, são cosmopolitas e viajados, possuem um gosto refinado e se enquadram num perfil mercadológico de negritude vendida para o resto do mundo facilmente encontrada nos filmes do cineasta Spike Lee. Há até um termo para se referir a eles: buppies (a versão black dos yuppies, jovens urbanos, na casa dos 20 aos 30 anos e bem sucedidos profissionalmente).
Digamos que a negritude de Vassell é tão perfeita que não passa de um charmoso acidente no mundo das artes. É sintomático que as afirmações da moça não tenham citado nem de longe a questão racial, algo que também foi evitado o tempo todo por Obama durante sua campanha presidencial. Mais sintomático ainda é o fato de haver um poster do atual presidente no escritório da diretora. Espero que, diferente dela, a negritude de Obama não seja um acidente, mesmo ele sendo de um charme sem fim!
Várias coisas vieram a minha cabeça durante minha leitura da reportagem. A primeira foi o filme Basquiat (1996), película sobre a trajetória do artista de pop arte Jean Claude Basquiat (1960-1988). Fiquei pensando nas festas, futilidades e discussões banais que assombravam o mundinho da arte nos anos oitenta e envolta do grupo de Andy Warhol (1928-1987), mentor de Basquiat. A segunda coisa que me veio a cabeça foi o livro que ganhei de uma amiga anos atrás intitulado O que eu amava, de Siri Hustvedt (Companhia das Letras, 2004). O romance é um thriller psicológico que tem como personagens principais indivíduos ligados ao mundo das artes em NYC e parte dele se passa no SoHo descrevendo o processo de gentrification dessa área. Por fim, lembrei do último livro de Paul Gilroy traduzido para o português: Entre campos: culturas, nações e o fascínio da raça (Annablume, 2007). Bem, aí você deve estar se perguntando: mas o que arte tem haver com Paul Gilroy? Explico-me...
Na minha opinião tanto Ms. Vassell como Basquiat fazem parte dessa atração e curiosidade que o senso comum e as artes possuem pelo exótico e diferente (nas palavras de Gilroy, seria o subtítulo de seu livro: "o fascínio da raça"). Se no começo do século XX negros eram trazidos de regiões distantes do continente africano para serem exibidos em zoológicos europeus, as posições de artista renomado e diretora de galeria ocupadas por negros de certa maneira ainda refletem um resquício desse imaginário. Nada mais descolado para uma galeria do que uma diretora negra. Nada é dito, mas a mensagem subliminar é interpretada pelos mais antenados. Mais: Vassell não é uma negra qualquer. Ela faz parte desse grupo dos super negros que falam inglês como primeira língua, moram em cidades globais como NYC ou Londres, foram educados em universidades renomadas, tem acesso à toda tecnologia disponível no mundo desenvolvido indo de laptops à iPhones, são cosmopolitas e viajados, possuem um gosto refinado e se enquadram num perfil mercadológico de negritude vendida para o resto do mundo facilmente encontrada nos filmes do cineasta Spike Lee. Há até um termo para se referir a eles: buppies (a versão black dos yuppies, jovens urbanos, na casa dos 20 aos 30 anos e bem sucedidos profissionalmente).
Digamos que a negritude de Vassell é tão perfeita que não passa de um charmoso acidente no mundo das artes. É sintomático que as afirmações da moça não tenham citado nem de longe a questão racial, algo que também foi evitado o tempo todo por Obama durante sua campanha presidencial. Mais sintomático ainda é o fato de haver um poster do atual presidente no escritório da diretora. Espero que, diferente dela, a negritude de Obama não seja um acidente, mesmo ele sendo de um charme sem fim!
3 comentários:
Kibe,
Fiquei com uma dúvida. Você compara o sucesso de Vassell e a atração que as pessoas sentem por ela ao fascínio que os "exóticos" africanos exerciam sobre os europeus. Mas tem de haver uma diferença, certo?
No primeiro caso, trata-se de um novo grupo ("buppies", se quiser) "empoderado", que estudou em boas universidades, tem poder de consumo como os brancos etc. Isso não é bom? Não foi esse exatamente o objetivo das ações afirmativas no anos 60: formar uma classe média e alta negra?
Fazendo-me maniqueísta, pergunto: para você, isso é bom ou ruim?
Abraço,
Rapha
Belo texto Kibe, mas também fiquei na dúvida da associação que vc faz com os zoos humanos e os buppies. O caso Vassel não seria uma prova de que há uma elite negra "globalizada" - já que não é uma afro-americana - emergindo no cenário das artes e afins nos EUA? Gilroy fala do fascínio da raça sinalizando que a modernidade ocidental não consegue e talvez nem queira se desprender disso. Não vejo uma conexão necessária entre as duas coisas, porém as alusões que vc propõe são boas de refletir.
Por último, há que se questionar exatamente o que é negritude pra uma Vassel e Obama da vida. Ou eles tem a negritude em um grau tão alto - se é que podemos falar assim - que nem mesmo falam do assunto diretamente ou estão no que agora virou moda chamar de momento "pós-racial", ou seja, arte, política e tudo o mais estão ou deveriam estar "para além das diferenças raciais".
Abs
Marcio André
Prezados Rapha e Márcio,
Obrigado pela leitura atenta do post e comentários. Lembrem-se, porém, que são apenas divagações sobre coisas que leio e vejo aqui em New York Shit. Pois bem, acho que não dá pra responder necessariamente como o Rapha pediu (sim ou não/bom ou ruim) uma vez que ele, como bom intelectual que é, sabe que as coisas não são necessariamente colocá-las nesses termos em nossas discussões. Não tenho dúvidas sobre os aspectos positivos do alargamento – já que elas já existiam bem antes dos anos 60 – de uma classe média e burguesia negra nos EUA. Contudo, a partir da minha experiência aqui, parece-me que isso gerou um certa dificuldade em discutir questões relacionadas ao racismo na sociedade norte-americana. Penso que o termo “pós-racial”, que Márcio bem lembrou, vem justamente não de uma esperança de que finalmente o sonho de Martin Luther King tenha se concretizado, a saber, de que as pessoas não fossem julgadas pela cor de sua pele, mas sim pelo seu caráter. Pelo contrário, “pós-racial” não passa de uma dificuldade em entender como as categorias classe e raça (e eu incluiria nacionalidade, se pensarmos em termos globais) se relacionam no mundo contemporâneo na produção de pobreza, discriminação, beleza etc.
A campanha de Obama foi um exemplo disso. A questão racial pendeu como uma espécie de pano de fundo que os candidatos (com algumas exceções, graças ao sermões incendiários do amigão Pastor Jeremiah Wright) evitavam olhar e/ou falar sobre. Contudo, negros – de todos as classes – nunca estiveram com o orgulho tão em alta, brancos progressistas se sentiam vingados depois da desgraça que foi a administração Bush e conservadores não se cansavam de levantar dúvidas quanto ao nome, pele, caráter e ideologia de Obama. Outra coisa interessante (mas que agora ninguém mais fala sobre isso!) é que no início da campanha muitos negros levantaram dúvidas sobre a legitimidade de Obama em falar como um afro-americano devido ao fato dele ser filho de mãe branca com pai negro (o que os caras chamam por aqui de bi-racial).
Outro ponto importante diz respeito à ambivalência da raça no contexto da modernidade ocidental. Africanos na experiência dos zoológicos humanos eram vistos como uma mistura de admiração, curiosidade e repulsa. Minha sugestão é que, guardada as devidas diferenças e anacronismos, o caso de Vassell ajuda a lançar luz sobre esse fenômeno ainda hoje. Uma negra, diretora de uma galeria de arte famosa joga o tempo todo com essa ambivalência e gera um charme exorbitante. O pertencimento racial de Vassell é de tal maneira estilizado por sua classe, educação, língua e profissão que o mesmo parece ser uma espécie de simples “acidente” que no mundo da arte é visto como algo extremamente charmoso uma vez que ele caduca com o imaginário negativo da raça sem se desprender totalmente dele. Minha dúvida é se é esse o caminho que a questão racial deve tomar no mundo desenvolvido, ou seja, ser negro é apenas um “acidente” visto aos olhos dos buppies? Tenho a impressão que não.
Não sei se respondi, mas tentei…
Abraços,
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