sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sangue no Zóio!


Sangue no Zóio!
Para meu amigo João Batista Félix


José Birula era tido como um militante radical, essencialista e que defendia  unilateralmente a autonomia da população negra. Crescera crente e corinthiano, virara punk nos anos 1970 e nessa mesma época adentrou as fileiras do movimento negro. Todos aqueles que conheciam Birulão, como era popularmente chamado, tremiam só de pensar em dividir uma mesa de debate com o figura. O homem era implacável, não deixava pedra sobre pedra e humilhava brancos e pretos pouco informados sobre ele e contrários as suas posições político/ideológicas. Enfim, Birulão se enquadrava naquilo que era conhecido no meio da negrada como o “negrão sangue no zóio”. Negrões “sangue no zóio” são aqueles pretos que exalam raiva e cujo os olhos ficam inchados e vermelhos antes dos mesmos partirem para o ataque. Assustador!

Segundo consta, há vários negrões “sangue no zóio” na história da humanidade: Marcus Garvey, Malcolm X, Otelo, Nego Dito, Serginho Chulapa, Muhammad Ali (foto), Exu, Frederick Douglas, Pato N’água, Tobias do Camisa, Branca de Neve, Rei Salomão, Notorious BIG, a Família Brown (James Brown, Mano Brown, Sheila Brown, Boby Brown e outros brownies), Xangô, Tupac Shakur, Saci Pererê, Neguinho Pastoreio, Hailé Selassie, Mike Tyson, Birulão dentre outros. Há também a categoria das “nega sangue no zóio”: Marli, Chica da Silva, Nina Simone, Maria Padilha, Angela Davis, Dandara, Rainha de Sabá e outras.

Birulão era o cara. Quando o seu Fusca vermelho com uma porta e capô preto sem pintura – que ele nunca tratava de arrumar – eram avistados nas quebradas do Bairro do Limão até o tom da rodas de conversa mudavam. As mães, quando queriam fazer as crianças se comportarem, apenas diziam algo como “Ah moleque, vou chamar o Birulão pra ter uma conversinha com você, viu?” e o problema se resolvia. Apesar de sua fama de severo, radical, inflexível, politicamente engajado e general, pouco se sabia da vida pessoal de Birulão. Pouquíssimas pessoas já haviam adentrado o interior da sua casa e os que fizeram contribuíam ainda mais para o folclore relacionado aquela figura do bairro do Limão. Alguns diziam que todas as paredes da casa eram cobertas com estantes cheias de livros e que não havia nem um móvel se quer, outros afirmavam que a casa era uma bagunça e cheia de garrafas de cachaça vazias espalhadas pelo chão, alguns afirmavam que havia despachos em todos os cantos da imóvel e outros ainda juravam que havia fotos nas paredes da casa que mostravam Birulão com uns trajes meio estranhos e segurando cobras nas mãos.

Mas o mistério sobre nosso pretão “sangue no zóio” era acompanhado de outros aspectos que deixavam todos ainda mais confusos. Birulão media quase dois metros de altura, possuía um corpo musculoso e os braços tatuados com símbolos enigmáticos. Geralmente usava um black perfeitamente arrumado com laquê, cavanhaque milimetricamente feito e um brinco de argola dourado na orelha esquerda. No dias de sol o homenzarão saía de casa todo estiloso usando Ray Ban aviador na cara, camiseta regata, calça boca de sino e bota preta engraxada a ponto de refletir imagens na sua superfície. Seus dentes chegavam até brilhar quando o pretão falava emitindo sua voz gutural com o típico sotaque paulistano e os irritantes “a nóis vai”, “a nóis vem”, “meu” e “ora” enquanto movia um palito de dentes no canto da boca. Todo domingo Birulão vestia uma camiseta de lã preta com o brasão do Corinthians e ia assistir os jogos do Timão no Pacaembu.

Havia estórias e mais estórias sobre Birulão... Uma de que ele havia batido em três policiais armados da ROTA, outra de que um sujeito tentou assaltá-lo na quebrada e que ele tomou a faca do infeliz assaltante cortou um dedo do rapaz e o comeu o pedaço de carne a sangue frio e outra que Birulão tinha sido boxeador e ganhado um campeonato estadual na categoria peso pena antes de passar a integrar as fileiras do movimento negro. Havia também comentários de que Birulão freqüentava um pé sujo na quebrada do Limão e ficava horas e horas tomando pinga e comendo pimenta malagueta como petisco: o pretão comia a pimenta e tomava a pinga num copo grande de suco pra dar uma refrescada. Mas a mais extraordinária história de todas era a de que Birulão era mestre de capoeira que jogava uma modalidade chamada rangonal – mistura de regional com angola – e que havia viajado para um país africano onde teria participado de um programa intensivo de guerrilha tendo como parceiros de curso militantes do Black Panthers Party, O Fruto do Islã (a guarda dos Muçulmanos Pretos), um pessoal da Torcida Jovem do Santos, outro da Gaviões da Fiel e a FRELIMO (só a elite dos “negrão sangue no zóio”) no qual iniciou os patrícios gringos nesse tipo de capoeira. Rambo, perto de Birulão, era um peidinho, diziam.

Outro lugar que Birulão podia ser freqüentemente visto era nos ensaios da Vai-Vai no Bexiga. O negrão tocava surdo e todo ensaio era necessário dar um instrumento novo pro figura já que Burilão destruía a parada devido a força com que batia no mesmo. Alguns diziam que Birulão batia no surdo imaginando que o instrumento fosse um branco. Mestre Tadeu, folgado como ele só, se virava para o patrício de quase dois metros e dizia enjuriado: “Porra negrão, você é foda hein?! Só dá prejuízo, caralho!”. O sonho das negas era ver Birulão na comissão de frente da escola mostrando o seu corpinho. Mas Birulão se negava, dizia que lugar de negrão que é negrão mesmo era com os “curvas de rio” da bateria (e haja curva de rio!). Pois é, Birulão, Birulão e Birulão... O terror da brancaiada e o fetiche da mulherada. Pois bem, aí que começava o problema.

Havia muita especulação sobre os motivos que haviam feito José Birula se tornar Birulão, ou seja, passar de um neguinho qualquer a um ativista radical. Por mais que ele sempre esclarecesse a todos que sua energia e luta não era dirigida contra os brancos, mas sim contra o racismo, e que “radical” não fazia referência a alguém extremista ou essencialista, mas a um indivíduo que focava as causas primárias dos problemas nas discussões uma vez que “radical” vinha de raiz, a maioria das pessoas o associavam a um imaginário de ódio aos brancos. A história mais disseminada para explicar esse suposto posicionamento era de que Zé Birula, ainda no início de sua juventude, havia sofrido uma desilusão amorosa com uma loira escandinava que o abandonara quando ele se encontrava perdidamente apaixonado. A partir daquele momento Birula teria prometido lutar contra todos os brancos, já que eles seriam a causa maior de seu sofrimento. Nascia então Birulão, o negrão sangue no zóio... Contudo, essa história era rebatida pela maneira cordial que o ativista radical tratava branc@s em geral, principalmente aquele/as que ele denominava branc@s aliad@s. Em suas falas ele explicava que o racismo deveria ser entendido como relação de poder disseminada na sociedade e  reproduzida tanto por negros como brancos, mas que favorecia brancos em detrimento de negros. Sendo assim, seria incorreto falar em negros racistas, já que negros não teriam o poder. Eles poderiam ser preconceituosos, mas não racistas. Mas como pouca gente entendia o palavreado cheio de “ismos” de Birulão – anarquismo, afro-marxismo, culturalismo, trotskismo, lenilismo, individualismo, corporativismo, estruturalismo, etcéteraismos – o termo “racismo às avessas” era logo associado ao pretão e Birulão era tido como um grande NEGRÃO RACISTÃO!

Mais controvérsia surgia pelo fato de que Birulão nunca era visto em companhia feminina algo que, ao mesmo tempo, fazia com que outros fuxicos surgissem como o de que Birulão era um gay enrustido que, por falta de coragem de assumir sua homossexualidade, canalizava seu ódio contra os brancos e exacerbava sua virilidade. O resultado era uma confusão só já que Birulão era temido e ao mesmo tempo desejado por branc@s e pret@s, heteros e homos. Birulão, o negrão sangue no zóio e símbolo sexual!

Toda a controvérsia sobre Birulão aumentava de forma vertiginosa. Havia apostas disseminadas entre todo o movimento negro e os brancos sobre se o negrão sangue no zóio seria gay, namoraria ou seria casado com um/a branc@. Mas algumas pessoas estavam decididas a desvendar os segredos do negrão e armaram uma espécie de cilada para o figura. O ativista foi convidado para falar numa mesa sobre a importância das mulheres negras e a questão da sexualidade no período da escravidão. Todos os participantes da mesa foram aconselhados a levarem suas namorad@s, esposas ou companheir@s já que a mesa se dava justamente num 12 de junho, dia dos namorados, e na seqüência haveria uma baile em comemoração a data.  O tema da mesa era sugestivo: “Por Todas as Formas de Amor Livre de Preconceito”. Birulão fora convidado a falar sobre a possibilidade de amor entre negros no período da escravidão e aceitou a proposta sem pestanejar ou desconfiar da verdadeira intenção dos organizadores.

O dia chegou. Pontualmente Birulão estacionou seu Fusca vermelho, com capo e porta pretos, em frente a Associação Mãe Preta localizada numa quebrada da Casa Verde. Vinha sozinho no seu carro o que despertou a atenção das pessoas que o receberam na entrada do prédio fitando seu rosto protegido pelos óculos escuros Ray Ban aviador. Ninguém disse absolutamente nada sobre a ausência de sua companhia, mas todos os olhares eram de cumplicidade e dúvida. Birulão parecia tranqüilo. Os outros participantes da mesa já haviam chegado sendo uma ativista negra lésbica, um branco gay e uma branca feminista. O negrão sangue no zóio cumprimentou todos de forma amigável e tomou seu lugar na mesa. A platéia era diversa: homens, mulheres e crianças das mais diversas raças e etnias. Negros, brancos, asiáticos, judeus ortodoxos, muçulmanos, evangélicos, candomblecistas, umbandistas, católicos entre outros, um zoológico só. Havia um certo frenesi na audiência, mas Birulão não notara nada de diferente na mesma em relação as outras que já enfrentara. Pelo contrário, aquela, sabia-se lá por qual motivo, parecia-lhe extremamente simpática. O branco gay foi o primeiro a falar e expôs a problemática de ser homossexual e ter relacionamentos como pessoas do mesmo sexo numa sociedade homofóbica expondo sua experiência de vida. Em seguida falou a branca feminista que trouxe números que evidenciavam a desigualdade de gênero entre homens e mulheres e como só se poderia haver relacionamentos verdadeiros quando as relações de gênero fossem mais igualitárias. Na seqüência falou a negra lésbica falando da especificidade das mulheres negras dentro de uma sociedade racista, machista e patriarcal. Ainda havia no caso dela a dificuldade de ser homossexual e enfrentar a homofobia da sociedade conjunta a opressão de gênero e raça. Birulão foi o último e falou de amor entre negr@s usando um texto de bell hooks. De acordo com ele, o amor tinha sido algo negado aos negros por conta da escravidão onde vínculos consangüíneos entre pai, mãe, filhos, marido e mulher eram quase impossíveis de serem estabelecidos. Mesmo com o fim da escravidão, o amor era visto como um privilégio em meio a necessidade de subsistência e essa dificuldade de amar continuava a existir devido ao processo de desumanização que negr@s haviam sofrido por conta do racismo. A possibilidade de amar plenamente para negros estava vinculado ao combate as formas de opressão vigentes não só no racismo, mas também na homofobia e no patriarcalismo. Ao final da fala dos palestrantes a platéia foi convidada a fazer perguntas e o debate durou por mais uma hora. Todos acompanhavam as perguntas e respostas com atenção. Por volta da 22 horas a mesa foi dada como encerrada e todos foram convidados a tomar parte do baile conduzido por um equipe de black music.

As simplórias cadeiras de metal meticulosamente dispostas na sala foram rapidamente retiradas deixando o espaço vazio para que o baile acontecesse. O disc-jóquei, após alguns testes no microfone e na aparelhagem, soltou a primeira melodia que suavizou ainda mais o ambiente descontraído. O rapaz gay segurava a mão de seu companheiro, a militante feminista parou ao lado de um homem que parecia ser seu marido e a ativista negra lésbica abraçava sorridente a sua esposa, uma mulher negra na casa dos 30 anos. Birulão havia sumido e novamente o olhar de dúvida e curiosidade invadiu os olhos dos presentes. Da mesma forma que desaparecera o negrão sangue no zóio reaparecera dessa vez segurando um copo americano cheio de cachaça e com um sorriso que exibia seus dentes imaculadamente brancos cujo brilho ofuscava a visão de seu rosto retintamente preto. O reflexo de seus dentes também fez com que somente após alguns minutos os presentes notassem que havia outro corpo atrás de Birulão. Um braço do corpo entrelaçava a cintura do negrão, mas era apenas o que se conseguia ver. A notícia começou a correr o salão e muitas senhoras mais velhas, após ouvirem a fofoca do que ocorria, sussurrada de ouvido em ouvido em voz baixa, faziam o sinal da cruz e saiam do salão de maneira discreta.

Uma hora se passou e Birulão continuava no canto do salão, bebericando sua cachaça e com o braço do corpo desconhecido circundando sua cintura. O salão começava a esvaziar. Foi nesse momento que um dos organizadores criou coragem e resolveu se dirigir até onde Birulão estava parado sorrindo e bebendo. Os passos do senhor branco de meia idade eram hesitantes e por mais de uma vez ele pensou em desistir de sua intenção, mudar de direção e se dirigir a outro lugar do salão. Porém, após não mais do que dez passos, ele se encontrava praticamente de frente com Birulão e no momento que ensaiava as primeiras palavras para a figura de quase dois metros de altura foi paralisado pela visão que teve. Um corpo idêntico ao de Birulão surgiu a sua frente como se o negrão houvesse se duplicado. O homem ficou aterrorizado e sua pele, levemente rósea, avermelhou-se. A boca meio aberta deixava explícito seu espanto e terror e, depois de alguns segundos olhando para as duas imagens a sua frente, o homem notou algo de diferente: um salto alto sustentava os pés nus de unhas pintadas de vermelho, a calça de lycra preta marcando as pernas volumosas, uma bata vermelha de seda combinando com os enormes, brincos, colares e pulseiras pretas que adornavam o corpo que tinha quase a mesma altura de Birulão. Meio sem jeito e procurando uma palavra que amenizasse a confusão que seus pensamentos haviam mergulhado o homem de meia idade disse de forma quase involuntária e com os olhos arregalados... “Porra Birulão, você é radical memo hein negrão?... Até sua muié é preta, caralho!”