quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Filme de Negrão em Destaque: Mostra de Blaxploitation em SP e RJ

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"Filme de Negrão" é uma expressão que eu e meus amigos usávamos nos anos 1990 e parte dos 2000 para se referir a películas focadas na experiência dos negros afro-americanos. O primeiro "filme de negrão" que assisti foi Do The Right Thing (1989) de Spike Lee que foi seguido por New Jack City (1991) de Mario Van Peebles e Boys n the Hood (1991) de John Singleton. A lista foi crescendo com o passar dos anos e envolvia desde os bangue bangues sanguinolentos urbanos da dupla de diretores The Hughes Brothers exemplificados em Menace II Society (1993) e Dead Presidents (1995) chegando até as comédias românticas pretas na pegada de The Best Man (1999) de Malcolm D. Lee.  O que eu e meus amigos não sabíamos à época é que todos esses filmes, e seus respectivos diretores, foram influenciados por uma tradição de cinema negro do final dos anos 1960 e parte dos 1970: o blaxploitation.  Entre 1 e 24 de novembro ocorrerá no Rio de Janeiro e em São Paulo a mostra de filmes Tela Negra: O Cinema do Blaxploitation (consulte a programação AQUI). É uma oportunidade única de assistir filmes históricos na telona.



Blaxploitation são filmes norte-americanos de “produção B”, ou seja, realizados com poucos recursos, e que exploram temáticas e atores negros em suas tramas e enredos. O termo blaxploitation é uma junção das palavras black (negro) e exploitation (exploração) tendo sido criada no começo dos anos 1970 por Junius Griffin: publicitário e diretor da Associação Para Avanço dos Homens de Cor (NAACP) de Los Angeles. A película que deu origem ao movimento foi o filme manifesto de Melvin Van Peebles, Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), sendo, posteriormente, seguido por outras películas que já tinham um apelo mais comercial. Uma boa explicação do que consistem esses filmes e do porquê deles terem sido tão populares a sua época pode ser captada ao descrevermos o filme de Peebles, considerado como a película mais política e responsável por lançar os marcos fundantes de uma estética utilizada até a exaustão (clique sobre os links para ver os trailers dos filmes citados abaixo).
 
Sweet Sweetback's Baadasssss Song foi produzido com recursos do próprio diretor e outra parte (US$ 50 mil) emprestada do ator Bill Cosby já deveras famoso à época. Peebles utilizou atores que receberam quase nada para atuarem e a edição/montagem foi realizada pelo próprio diretor que quase ficou cego no processo. Peebles ainda atuou como personagem principal e enfrentou barreiras burocráticas para lançar o filme que foi classificado na mesma categoria de filmes pornográficos devido as cenas de sexo e conteúdo polêmico o que, junto com outras questões, fez com que a maior parte dos cinemas se recusassem a exibí-lo. Mesmo assim o longa de Peebles estourou fazendo a maior bilheteria de um filme independente nos EUA naquele período e lucrando em torno de US$ 10 milhões. Isso se deu em muito devido a aprovação do conteúdo da película pelos Black Panthers Party que o viram como uma espécie de resumo da sua ideologia.

O filme conta a história de um cafetão negro perseguido pela polícia após matar, com as próprias algemas, dois policiais que espancavam um jovem negro na sua presença. A história é repleta de uma iconografia entendida como subversiva e transgressora à época, pois negros são vistos em papéis que exageram estereótipos aos quais estavam submetidos, exemplo disso pode ser visto na forma como a sexualidade é retratada no filme. Ao mesmo tempo, o filme coloca no centro da trama um negro que atua desafiadoramente na tela agredindo policiais brancos e fazendo sexo com mulheres brancas. Sweet foi o filme que forjou a fórmula utilizada pelos filmes blaxploitation mais comerciais dos anos 1970 como Shaft (1971), Super Fly (1972) Cleopatra Jones (1973), Foxy Brown (1974) dentre outros. Em todos esses filmes os personagens principais são espécies de heroínos negros nada ortodoxos que usam e abusam de violência, virilidade, malandragem, técnicas de caratê e capacidade de sedução para chegar aos seus objetivos.
 
Outro aspecto digno de nota diz respeito as trilhas sonoras dos filmes. Produzidos num momento de ascensão dos ritmos soul e funk determinadas canções se tornariam tão ou mais famosas do que os filmes para os quais foram criadas. Esse é o caso do tema de abertura de Shaft,  escrita e interpretada por Isaac Hayes (ouça AQUI), assim como o mesmo ocorreu com a trilha sonora de Superfly, que levou a assinatura de Curtis Mayfield (ouça AQUI). A propósito, o diretor dos dois filmes citados é Gordon Parks, famoso fotográfo afro-americano que nos anos 1960 ao visitar o Brasil a trabalho para a Life Magazine acabou se envolvendo numa polêmica devido ao teor das fotos tiradas por aqui e publicadas na revista norte-americana (leia mais AQUI).

Os quinze filmes que compõem a mostra fornecem um bom panorama do que foi o movimento. Entretanto, faltou um olhar mais focado no sentido de entender qual é a contribuição do blaxploitation para a indústria do cinema, em geral, e o cinema negro, em específico. É esperado que os debates programados para acontecer cumpram esse papel ao trazer diretores de cinema e outros especialistas no assunto. Porém, a exibição de alguns filmes poderiam suprir essa lacuna. Esse  o caso do documentário Baadasssss Cinema - A Bold Look At 70's Blaxpoitation Films dirigido pelo inglês Isaac Julien em 2003. Julien entrevista as principais estrelas que atuaram em filmes blaxploitation e evidencia como o gênero foi responsável por influenciar a obra de um dos mais importante diretores norte-americanos contemporâneos: Quentin Tarantino. Em sua entrevista Tarantino diz ter sido um grande fã dos filmes a ponto de ter tido a idéia de realizar um remake de Foxy Brown, Jackie Brown, filmado em 1997 e que contou com a participação da atriz Pam Grier numa parceria incrível com Samuel L. Jackson.
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Outra faceta que fica faltando a mostra são os filmes blaxploitation que fazem paródias escrachadas de gêneros clássicos do cinema americano como o filme de "terror" Blacula (1972) e o bangue bangue Boss Niger (1975). Algo que também nunca tivemos a chance de ver aqui no Brasil é Dolemite (1975): uma espécie de Charles Bronson negrão pra lá de engraçado. Dolemite é um cafetão (pimp) negro barra pesada lutador de kung fu interpretado pelo comediante Rudy Ray Moore (1927-2008). O sucesso do primeiro filme rendeu várias outras continuações que se extenderam até 1982 num total de quatro.  Recentemente, uma comédia intitulada Black Dynamite (2008) foi produzida nos EUA tendo como inspiração os filmes de Moore e seu personagem clássico Dolemite. Penitentiary (1979) de Jamaa Fanaka e Baadasssss! (2003) de Mario Van Peebles, que conta a história da produção do filme de seu pai, Sweet..., também seriam bem-vindos a mostra.

Por fim, rola uma certa forçação de barra da produção da mostra ao enquadrar o documentário Wattstax (1973) como um blaxploitation. O filme tem valor inestimável para entender os vínculos entre música e ativismo nos EUA dos anos 1960, contudo, ele não se enquadra de forma alguma numa estética e proposta blaxploitation. O título Wattstax é uma brincadeira juntando os nomes do bairro de Los Angeles Watts com Stax, legendária gravadora de soul norte-americana. Em 1972 foi realizado o Wattstax Music Festival no Los Angeles Coliseum reunindo artistas da gravadora para uma apresentação que ficaria conhecida como a Black Woodstock e que celebrava o sétimo aniversário dos riots (revoltas) ocorridos em Watts em 1965. O filme intercala os shows realizados com a fala de moradores do bairro sobre racismo, violência policial e perspectivas de vida. O ponto alto do filme é a condução do mesmo pelas piadas de Richard Pryor, o primeiro comediante negro a incluir ácidas críticas sociais ao racismo e relação entre negros e brancos nas suas piadas (boa aulinha para os amadores da comédia stand up brasileira), antecipando o estilo em que Chris Rock faz tanto sucesso hoje.

Mesmo considerando essas omissões e escorregões, a mostra é imperdível. As imagens exibidas acima são de Richard Roundtree, Melvin Van Peebles, a fabulosa Tamara Dobson, Ron O'Neal, a linda Pam Grier, cartaz de divulgação do filme Wattstax e, por fim, Rudy Ray Moore.

Muita Paz!

PS: agradeço a meu truta Vandão por me avisar da mostra e sugerir o post!