domingo, 24 de agosto de 2008

Quero uma nega de cabelo duro (texto antigo, 2003 ou 2004!)

“Quem é, é! Quem não é, cabelo ‘avoa’”
Ditado do morro.

“Olha a nega do cabelo duro, que não gosta de pentear/Quando passa na boca do tubo o negrão começa a gritar/Pega ela aí, pega ela aí...” Realmente, a segure aí, mas não é “para passar batom”, mas para ser a minha nega, a minha rainha preta.

Pixaim, ruim, duro, fuá e Bombril. Estes são alguns dos sinônimos usados aos quais o cabelo crespo dos negros é freqüentemente referido na linguagem popular. O imaginário associado aos nossos cabelos é extremamente negativo, ligado à feiúra, o mau gosto e a anormalidade. Durante anos, a atitude dos brothas e sistas ao redor do mundo em relação ao “problema” do cabelo tem sido à busca de intervenções químicas que o trouxessem para mais próximo do tipo de cabelo “padrão”, associado ao belo e ao bom gosto: o liso.

Cornel West, em um dos seus lúcidos escritos (veja o livro Questão de raça), mostra como uma das facetas mais difíceis de combater do racismo está associada a seu aspecto inconsciente, a seu lado psicológico introjetado pelos indivíduos. Dentro desse universo, o corpo negro é concebido num misto de repulsa e desejo. Se por um lado, partes como a boca, o nariz, o cabelo e a pele são vistos como aberrações e tendem a ser rejeitados levando a uma baixa auto-estima, por outro, o combate a essas construções é realizado através de uma valorização exacerbada da sexualidade, algo elaborado a partir de imagens estereotipadas de homens e mulheres negras superdotados sexualmente. Em meio a essa esquizofrenia temos no debatido há muito tempo, talvez o poema “Emparedado”, do poeta Cruz e Souza, seja o texto que melhor defina essa situação. Contudo, minha intenção aqui e discorrer sobre o cabelo crespo ou sobre o cabelo “pixain”, para ser mais específico.
Existiria uma supremacia do cabelo liso entre as mulheres em geral e as negras em específico? Creio que sim. Diante dessa auto resposta afirmativa, tenho ciência de estar abrindo meu flanco para uma série de críticas vindas das mulheres negras. Argumentarão que o fato de usarem o cabelo desta ou daquela maneira ou de realizar intervenções químicas no couro cabeludo é algo peculiar a qualquer mulher, independente de ser negra, branca ou asiática. Respeitando a liberdade das mulheres de fazerem o que bem entenderem com seu cabelo, penso que as intervenções são realizadas tendo um padrão: o padrão de beleza branco ou, para utilizar aqui um eufemismo, o padrão dominante.

É bom que fique claro (ou “escuro”) desde já que esse fato não se restringe às mulheres. A moda tão popular entre artistas e atletas negros homens de raspar o cabelo também pode ser encarado como uma resposta ao “cabelo problema”, apesar das argumentações em favor desse estilo como mais “clean”, higiênico e prático. Seria então o cabelo crespo sujo e difícil de cuidar? Pensar sobre os padrões de normalidade e anormalidade evidencia a subjetividade inerente na construção e hierarquização da diferença. O problema não está na diferença, mas o que certas “marcas” passam a designar.
O cabelo crespo, para todos, seja negro ou branco, homem ou mulher, é, na maioria das vezes visto como sujo, feio e difícil de lidar. É bom lembrar sempre que estou enfatizando apenas uma parte do corpo, contudo, cabe a mesma lógica aqui para o caso de mulheres negras de países africanos que utilizam produtos químicos para clarear a pele. Uma atitude deliberada, contudo, inconsciente, de mutilação do corpo negro. Esses são fatos comuns em sociedades abertamente racializadas como em outras que celebram a sua tradição de aracialização, como é o caso do Brasil.
Já há algum tempo notei, em minhas buscas nas casas de cosméticos por um xampu e condicionador para meu cabelo, que não há produtos específicos para cabelos crespos, mas só para os “quimicamente tratados”. Nos rótulos desses produtos é possível observar, na maioria das vezes, a imagem de uma mulher negra ou mestiça extremamente atraente com os cabelos encaracolados (depois de “quimicamente tratados”, acho!). Fico me questionando a respeito do que isso quer dizer? Outro fato que me intricava bastante era a propaganda de um profissional da área de beleza e estética, veiculada anos atrás numa revista direcionada ao público negro, que divulgava seus serviços da seguinte maneira: “Cabelo crespo tem solução”. O mais cômico era que, ao lado dos dizeres, havia a fotografia do profissional, tratando-se de um senhor na faixa dos quarenta anos de idade com o cabelo totalmente raspado. É óbvio que não era essa a “solução” apresentada as suas clientes, mas a frase, além de causar um tremendo impacto no leitor mais atento, era de uma infelicidade tamanha. Dentre os títulos que consagravam a respeitabilidade do cabeleireiro da infeliz eram citados vários estágios em faculdades de beleza nos Estados Unidos.

É bom realizar a entrada desse país nesse pequeno texto lembrando que esse é o país no qual as técnicas de intervenção química no cabelo crespo se tornaram mais avançadas. Nos anos 1960 a Fuller Produces Company faturava em torno de dez milhões de dólares com a venda de cremes para branquear a pele e alisar o cabelo, o que, numa visão extremamente ingênua (ou oportunista!) da empresa, acabaria com a discriminação. Em retaliação, ativistas do movimento Black Power deixaram crescer os cabelos, usando os mesmo sem a intervenção de produtos químicos. Estava criado o “afro” ou visual “black power”, que tanto sucesso fez entre jovens negros e não negros entre os anos 1960 e 1970.

Ainda nos 1970 outro movimento que subverteu o imaginário do cabelo crespo como algo ruim de maneira radical foi o rastafarianismo. Os rastamen com seus dreadlocks (numa tradução livre “tufos de pavor”), no Brasil conhecidos como trancinhas “rastafari”, também passam a fazer parte da cena urbana de todo o mundo. Isso se deu devido ao boom internacional da reggae music que tinha como principal artista neste período o jamaicano Bob Marley, que politizava suas canções cantando a realidade das colônias africanas que buscavam a libertação do neocolonialismo europeu e filiou-se a filosofia de vida do rastafarianismo[1]. As tranças dreadlocks foram tomadas pelo ativismo negro como uma forma de afirmação da identidade negra e de posicionamento político, algo que já havia acontecido com o corte “afro” ou “black power” na década anterior. Além desse aspecto político, o que esses fatos demonstravam era que era possível criar um estilo negro próprio, desde que começássemos a valorizar o nosso corpo de forma sincera e livre de estereótipos.

Recentemente, ao fazer pesquisa de campo para escrever um artigo sobre bailes black na cidade de São Paulo, me dei conta de que a manipulação do cabelo crespo está finalmente se diversificando para além das, ainda majoritárias, intervenções químicas. É possível ver garotos e garotas com o cabelo solto num “black power”, com dreadlocks (sejam verdadeiros ou postiços), tranças dos mais diversos tipos, canecalons entre outros. Esses visuais estão ligados a uma mudança nos padrões de beleza trazida pelo aquilo que alguns antropólogos chamam de internacionalização da “cultura negra” de origem anglo-saxã. Em outras palavras, estamos falando do que é produzido musicalmente e esteticamente pelas populações negras do eixo Los Angeles, New York, Kingston e, num menor grau, Londres e divulgado pelo mundo como imagem do que é ser “negro”, “moderno” ou, em certos casos, diversidade étnica.

Contudo, nem tudo são flores. Os clipes de rap, R&B, raggamufin entre outros ritmos negros e os filmes conhecidos como blaxploitation ou de temática negra também reelaboram uma série de estereótipos existentes dos brancos sobre os negros e dos negros sobre negros além de apresentar facetas de graves problemas existentes dentro de nossa comunidade como a misoginia, o machismo, o homofobia e da criminalidade, nos seus mais diversos níveis, como manifestações inerentes e saídas para nossa experiência histórica de população pobre e exploradas. É óbvio que não podemos isolar a arte e a indústria cultural num determinismo “politicamente correto” chato, mas seria válido tentar evitar os extremos de um lado ou de outro. Num dia desses estava num samba e meu amigo dirigia-se às garotas do lugar chamando-as de “putas”, algo similar aos “bitches” e “hos” cuspidos, a torto e a direita, pelos rappers americanos.

O que quero evidenciar aqui é que uma reelaboração da estética negra traz vários outros estilos de cabelo como opções às tão cruéis intervenções químicas. Teremos liberdade para usar o cabelo da maneira que bem entendermos se tomarmos ciência de que nosso cabelo não é “ruim” muito menos “feio”, mas um cabelo como qualquer outro que exige cuidados e possui uma beleza singular. Nessa nova estética dos nossos cabelos há lugar para os dreadlocks, as tranças dos mais diversos tipos e o “black power” para ficar apenas nos mais conhecidos. A única coisa a ser feita é usar a criatividade. Ter cabelo crespo não é um problema, é por isso que eu quero uma nega de cabelo duro. Danem-se os imbecis que perguntam “qual é o pente que a penteia” ou “que cabelo dela não nega”, pois o meu também não nega e nem “avoa”. Enfim, cabelo crespo para mim não tem solução... Pois, nunca foi um problema!

Nota de rodape[1]: O rastafarianismo é uma filosofia de vida que mistura elementos da tradição judaico-cristão com a história da África, mais especificamente da Etiópia. Ras Tafari Makonen é o nome de Haile Séllaissié I, Imperador da Etiópia e sucessor de Menelick II que em 1896 derrotou os italianos na Abissínia tornando a Etiópia a primeira nação africana independente. Em 1928, ano da coroação de Selassié I, o país se filia à Liga das Nações. Segundo a filosofia rastafari Haile Séllassié I seria a forma humana de Deus (Jah) na terra e a Babilônia é o mundo profano dos brancos. A coroação do imperador teria sido profetizada por Marcus Garvey em 1925. Os rastamen seguem alguns preceitos como o não corte do cabelo (dreadlokcs), vegetarianismo, uso de ganja (maconha) para rituais de purificação entre outros.

4 comentários:

Unknown disse...

É isso ai amigo falou e disse! Sou uma negra do cabelo duro que se recusa a fazer escova, alisamentos etc... e com muito orgulho! somente gosto de valorizar a minha raiz e beleza negra porque não?! Quem disse que o padrão de beleza tem que ser cabelo liso, escovados... cada um com sua diversidade e sua beleza!

gabrielli disse...

isso eu nao sou negra tb nao tenho cabelo duro mais tb naum sou prec. mais eu acho q p/ se valorizar um pouquinho tenque cuidar pelo menos pq tem muita gente besta q zua por um minimo defeitinho q encontra em alguem eu nao sou assim pq eu sei q se eu zuar alguem por alguma coisa amanha pd ser eu e aliais tem muitas negras q sao mais lindas q loiras e morenas nao tem??

gabrielli disse...

gostaria eu de saber 1 coisa o q os homens sentem qd a mulher encosta nele?

Andressa disse...

Nos negras desde pequenas aprendemos essas questões sobre o nosso cabelo. É bem difícil não adotar estes padrões, uma vez que este preceito vem desde nossos avós 😉😍