terça-feira, 26 de maio de 2009

Morte ao “samba de raiz”!


Sempre recordo uma conversa que tive com meu amigo Billy Malachias há alguns anos atrás. Sentados numa mesa do velho prédio de história e geografia da USP – uma construção que se parece mais a uma rodoviária de cidade do interior paulista do que um espaço acadêmico – Billy e eu dávamos boas gargalhadas com a idéia de organizar uma festa de “samba de raiz” na faculdade de filosofia. Iríamos arrumar um grupo de pagode que tocaria só músicas de grupos como Katinguele, Exaltasamba, Grupo Tempero, Clave de Ases dentre outros e para completar a tiração de sarro, decoraríamos todo o espaço da festa com mandiocas, beterrabas, cenouras e batatas: “samba de raiz”, numa invocação literal do termo.

Ano passado, semanas antes de minha mudança para NYC, passeava pelas ruas de meu antigo bairro, Vila Madalena, e me deparei com um cartaz que anunciava uma “feijoada com samba de raiz”. Foi aí que me dei conta de que o “samba de raiz” havia se transformado numa erva daninha que se espalha com uma rapidez absurda por Sampa. Já há similares do “samba-raiz” em outros ritmos como o “rap de raiz” e o “forró pé de serra”, "música caipira" faz frente a deturpação do sertanejo... Urgh! Billy, com seu sarcasmo habitual, me enviou uma mensagem meses atrás sugerindo que devíamos, para conter a expansão do samba de raiz, reivindicar a volta da batucada!

Mas a pergunta que fica é: que diabos afinal é o “samba de raiz”? Simples, “samba de raiz” faz referência a velha busca de autenticidade, pureza e distinção estabelecida por determinados grupos na disputa pela apropriação simbólica de manifestações culturais. Em outros termos, há uma busca e eleição de grupos que representam o “samba autêntico”, rotulado comumente de “samba raiz”, usado como forma de distinção social por parte das pessoas que o apreciam. Nesse processo ocorre a hierarquização dos estilos estabelecendo o que é de bom gosto e o que é ruim.

Um observador mais “purista” ou preocupado com a “tradição do samba” (um “sambista raizeiro”) dirá que o “pagode” é um samba pouco original, negativo e massificado pela indústria fonográfica, representado pelas músicas de grupos e sambistas como Exaltasamba, Revelação, Belo, Sensação entre outros majoritariamente surgidos nos anos 1990. Um apreciador de “samba de raiz” tem no seu panteão divino cantores como Cartola, Noel Rosa, Aniceto, Tio Hélio do Império, Heitor dos Prazeres, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Beth Carvalho, Candeia, Geraldo Filme, Beth Carvalho e, no máximo, Fundo de Quintal e Zeca Pagodinho (esses dois já andam muito massificados para o gosto dos “puristas”).

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Okay, não sou um grande entendido de samba, mas não ingênuo o suficiente para não saber que estou enfiando minha querida mãozinha preta num vespeiro. Há polêmicas e mais polêmicas relacionadas ao ritmo nacional por excelência. Controvérsias sobre sua origem baiana ou carioca, se ele é um produto do morro ou do asfalto, negro ou mestiço (leia O Mistério do Samba de Hermano Vianna, elogiado por uns e criticado por outros, e Samba Negro Espoliação Branca de Ana Maria Rodrigues, pouco citado diga-se de passagem) entre outras coisinhas.

Como devem ter percebido pelo tom de meu texto, não gosto do rótulo “samba de raiz". Isso não passa de um discurso classe-mediano que busca se apropriar de um ritmo intimamente relacionado as populações negras e pobres (“e pobres são como podres” já disse Gil e Caetano, caras com os quais tenho prós e contras!). Nos anos 2000 o samba se tornou o ritmo queridinho da juventude universitária paulistana branca ou preta devido a um certo vazio que pairava sobre a música pop nacional. O samba era uma alternativa interessante ao horror que todos sentiam pelo axé, sertanejo, funk e em parte pelo forró (esse também foi cooptado, lembremos do nosso querido "forró universitário").

A primeira juventude universitária o clareia buscando aproximá-lo da MPB enquanto que a segunda o escurece tentando colocá-lo ao lado do jongo, samba de umbigada e batuque. Mas ambas acreditam de uma forma ou de outra em versões de origem do samba e buscam estabelecer os grupos que estão mais próximos ou distantes dela, quando mais distante menos puro e, consequentemente, menos digno de apreciação. Tendo a lembrar uma conversa que tive há tempos atrás com meu ex-professor de antropologia na USP Vagner Gonçalves da Silva. Grande entendido em questões afro-brasileiras, Vagner, recorrendo a um dos pais fundadores da antropologia, dizia que o máximo que se encontra quando se busca incessantemente a origem das coisas é o caos!

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Quem se fode nessa história toda de busca de raízes é o pagode, um filho bastardo – e portanto impuro e ilegítimo – que ninguém quer assumir, mas que anima festas de casamentos, batizados, festas de São Benedito em Tietê e churrascos feitos nas lajes de periferias do Brasilzão a fora. Para mim tudo é samba, afinal o que seria do Salgadinho se não existisse o Zé Kéti??? Vou cantando Inarai e Lua Vai com o Salgadinho e depois embalo num As Moças do Meu Tempo do Zé Keti! O mais curioso é notar como o ritmo nacional por excelência é uma matriz de poder simbólico enorme que incorpora todas as contradições de nosso país. Morte ao "samba de raiz" e viva a batucada, como já disse Billy Malachias!

9 comentários:

Curso de História - Miguel Maluhy disse...

Estava passando esses dias pela avenida Francisco Morato, em São Paulo, e avistei um clube que havia se especializado em "sertanejo universitário". Resumindo: sertanejo sem pretos e mestiços.

:: Soul Sista :: disse...

Psiu, quantos anos vc tem? Inarai, Lua vai? Onde anda Salgadinho, minha gente? Pra mim, ele já estava barrigudo, recebendo salário de uma repartição pública e revendo, nos finais de semana, seus DVDs dos tempos de glória. Ai ai a thousand times!!!!!! rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs

Morte ao samba de raiz e a tudo com rótulo de universitário!!!! Viva Leandro Lehart, que enriqueceu com seu PIMPOLHO, e Exaltasamba, que fez eu passar a melhor quinta-feira de carnaval no último fevereiro. Em Sampa há quinta de carnaval? Aqui em Soterópolis há e acontece não um dia depois da quarta de cinzas, mas a exatos sete dias antes do fim da festa da carne. É tão boa que grupos paulistas vêm encher sua conta bancária por aqui. Eu mesma esse ano ganhei muita água mineral de graça. Isso porque não agüentava mais tomar cerveja. Sacou? rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrssrsrsrsrsrs

Márcio Macedo disse...

Flávio Jay Z e Bibi Lima,

Obrigado pelos comentários!

Eu e Flávio há bastante tempo temos tido um posicionamento crítico/sarcástico em relação a essas tendências de reificação, categorização e hierarquização das culturas negras (mesmo que de vez em quando façamos a mesma coisa com interesses próprios! *rs*). Não me canso de lembrar (e rir!) dos nossos comentários sobre os antropólogos que vão todo ano registrar o batuque de pretos velhos que rola na festa de São Benedito em Tietê, cidade interior de São Paulo. O batuque acontece na noite de sábado e tudo é devidamente registrado pelo olhar e câmeras etnográficas dos pesquisadores. No dia seguinte, que rola uma das maiores festas da negrada de SP e do Brasil, nenhum antropólogo fica para registrar a parada já que a mesma é embalada por pagode, cerveja, muito beijo na boca (pra começar...) e entendida (por pessoas mais idosas e alguns pesquisadores) como uma deturpação da festa religiosa. Vai entender...

Bibi, vou te falar: essa música do pimpolho é um pentelho, mas vale tudo para fazer frente ao avanço do "samba de raiz", alianças estratégicas. O Exaltasamba, por sua vez, já é mais tranquilo e estiloso e encaro numa boa. Sobre o Salgadinho, as últimas notícias que tive dele foi que o mesmo havia se convertido a uma igreja neopentecostal, estava fazendo pagode gospel e vendendo horrores. Viu, bobo é nóis! Aposto que meu parente próximo (lembre-se que sou o Kibe) não está nem aí pra essa onda de "samba de raiz", afinal, Jesus o ama! Agora, sobre a sua observação de que ele deveria estar a essa hora barrigudo e assistindo o seus antigos DVDs, posso lhe dizer que não é bem assim. Você lembra de como o Salgadinho era no começo do Katinguele? Óculos com lente fundo de garrafa, calça social na altura da barriga e camisa com lantejoulas. Procurei uma dessas fotos antigas pra postar, mas não achei não! O cara saiu de uma pegada irmão da "Beth, a Feia" pra galã black na época e acho que ainda continua estiloso. Pra fechar, minha música predileta do Katinguele é "Deusa Menina": "...Essa deusa menina que me alucina, tem os olhos que me incendeia/Essa mesma mulher que me tem quando quer..."

Muita paz e muito pagode!

Cris Santana disse...

Ótimo texto, Kibe... como sempre! Aproveitando a ocasião do seu retorno, estreio aqui algumas impressões:

Nem em repartição pública, barrigudo, nem louvando a Jesus: Salgadinho está em plena forma (ou quase lá!)em "Katinguelê - A volta", rs...rs...rs...

Esta história de raiz das coisas, da pureza, do que tem qualidade ou não, me fez lembrar uma passagem de uma estória de Luuanda (Luandino Vieira) em que se diz o seguinte:

"Ou tudo que se passa na vida não pode-se agarrar no princípio, quando chega nesse princípio era também o fim de outro princípio e então, se a gente segue assim, vê que não se pode partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece..."

Penso que com o samba (e outras manifestações culturais) se passa mais ou menos isso, os movimentos, as mudanças e as diferentes expressões em diferentes tempos e espaços são inevitáveis, e querer categorizar as realizações de um determinado período como as puras, as "de raiz" e por aí vai, para mim, não cumpre propósito algum, a não ser isolar e permitir a criação do grupo dos "suuuperrrr-descolados-preservadores-e-defensores-da-verdadeira-cultura-popular".
Como ouvi outro dia num bar: cultura popular é assistir o show do Daniel tomando cerveja no copo de plástico. Troco o sertanejo por um "Inaraí" e não consigo me imaginar em situação mais "raiz"!

Ah, Kibe... precisando de ajuda para a realização da festa, estamos aí! Rs...rs...rs...

Mojana disse...

As pessoas que me conhecem sabem que eu tenho uma postura abertamente anti-enraizadora, em especial com certas manifestações culturais "de raiz" criadas a partir de movimentos ou manifestações "sociais" alimentadas a partir da academia, rsrsrs.
Outro dia, um conhecido me falou que tava a fim de ir numa festa black e eu perguntei: "Você quer ir numa festa black com ou sem blacks?"
Creio que essa é justamente a questão em relação ao tal samba de raiz. É samba sem cerveja, sem bagunça, enfim, Samba sem Preto. Mais ainda, essa categorização entre o que é e o que não é raiz, é parte de um discurso de poder mesmo dos grupos sociais que determinam o que é legítimo, puro e bom. E nisso, a classe média branca e bem nascida da USP é craque absoluta.
Por outro lado, eu acho um erro de parte da juventude universitária negra a tentativa de reproduzir essa forma de discurso apenas trocando os fatores: sai o samba de raiz, entra a capoeira angola, umbigada, tambor de crioula e sei-mais-o quê. Dividem-se os "negros atuantes e conscientes, em sintonia com a sua herança cultural" e os "negros alienados de todos os tipos", o que do meu ponto de vista além de ser um desserviço para a causa, também produz um pessoal chato pra caramba.

Curso de História - Miguel Maluhy disse...

Outra coisa irritante: conversa de carioca de que o fenômeno do pagode no anos 90 é coisa de paulista sem talento.
Bem, paro por aqui. Por que em temas como esse, não consigo ser politicamente correto e nem abrir mão do meu repertório sórdido.
Abraço!

Márcio Macedo disse...

Preazadas Ladies (Cris e Mojana),

Obrigado pela leitura, elogios e comentários! Aliás, concordo plenamente com vossas obervações.

Cris, Luandino é uma das minhas leituras programadas para as férias. Quem me falou dele foi aquele pretinho safado chamado "U"vanderson! Ah, você precisa visitar o blog de minha amiga Bibi Lima, acho que vocês tem muita coisa que conversar sobre literatura. Bibi é professora do Colégio Pedro II e faz doutorado na área de literatura no Pós-Afro (CEAO/UFBA) em Salvador.

Mojis, estou nesse exato momento em DC assistindo o jogo do Corinthians! Realmente, endeuzamento da capoeira angola é foda! A melhor explicação que tive dessa polêmica sobre angola e regional foi de um mestre lá de São Mateus, SP. Encontrei o mesmo durante a realizaçao da Expedição São Paulo 450 anos, 2004, e ele me disse que os mestres jogam os dois tipos de capoeira: a regional quando são jovens e tem mais força física e a angola quando ficam mais velhinhos. Boa explicação!

Beijos em ambas!

Márcio Macedo disse...

Flávio,

No comments either, man!

Abraços,

Kibe.

Anônimo disse...

Luandino é cult ...não sabia!