Rolezinhos, não se fala em outra coisa. Não tinha a intenção de escrever sobre o tema, mas venho lendo tanta coisa que me desagrada na web que decidi alinhavar algumas linhas sobre o fenômeno. Algo curto, que fuja do sociologuês e evite exotizar, vitimizar ou alocar uma precoce agenda revolucionária e/ou de resistência nos jovens que participam dos rolezinhos.
O trecho que abre esse post foi retirado do artigo "Negros do Brasil" publicado no jornal O Estado de São Paulo e escrito pelo jornalista Paulo Duarte (1899-1984). O texto evidencia a preocupação das elites paulistanas em relação à ocupação da região central da cidade pelos negros nos anos 1940, associando-os ao perigo e à violência. A Rua Direita foi motivo de várias polêmicas entre a população negra e os comerciantes ali estabelecidos nessa época (basta ler relatos históricos sobre esse período). Certa feita tentou-se proibir a circulação deste contingente da população no local e num artigo de jornal os lojistas alertavam que os negros estavam dando a São Paulo um aspecto de Havana, Cuba. Duarte, contudo, não atacava somente os negros “agressivos” e “embriagados” da Rua Direita e da Praça do Patriarca, mas também o que ele chamava de “sociologia nigro-romântica do Nordeste” e a literatura “dos sociólogos romancistas ou dos romancistas sociólogos tidos como alunos do Sr. Gilberto Freire (sic); rapazes de algum talento, sem possuir, no entanto, do mestre nem a cultura nem a análise aguda deformada apenas pela sua irreprimível imaginação tropical cheia de brilho”. Esses intelectuais, de acordo com o literato paulista, insistiriam em pintar um tipo brasileiro definitivo tendendo para o negro, mas Duarte afirmava categoricamente do alto de sua sapiência paulista quatrocentona: “Uma coisa, porém, existe e existirá com absoluta nitidez, a deliberação marcada pelo consenso unânime dos brasileiros lúcidos: o Brasil quer ser um país branco e não um país negro” (leia o texto completo de Duarte clicando AQUI).
O contexto é distinto, mas o fenômeno dos rolezinhos guarda similaridades com as polêmicas dos anos 1940 e 1950 envolvendo negros, brancos e comerciantes do centro de São Paulo. No projeto de sociedade que vem se construindo no Brasil nas últimas duas décadas, o processo de reconhecimento dos indivíduos e cidadãos passa necessariamente pelo acesso ao mercado, ou seja, consumir. Não é à toa que o que mais se constrói em São Paulo e no restante do Brasil nos últimos anos são novos shopping centers e hipermercados. Na sociedade de consumo, shopping centers configuram um espaço de imbricamento de consumo, sociabilidade e lazer em um espaço privado. Historicamente no Brasil o consumo é uma prática reservada a grupos minoritários pertencentes às elites e, por conta disso, foi/é usado como forma de distinção social. Mas a expansão do consumo que vem se dando nos últimos anos faz com que a distinção social que ele estabelecia anteriormente não tenha o mesmo efeito na conjuntura atual.
Por outro lado, é necessário possuir certa sensibilidade para não reproduzirmos ideias equivocadas oriundas do senso comum. Jovens e pobres (negros ou brancos) sempre consumiram e frequentaram shoppings no Brasil. Tanto é verdade que os rolezinhos em sua maioria vêm acontecendo até agora em shoppings com um perfil mais popular o que comprova que há muitos anos já ocorreu uma segmentação dos shoppings por classe social. Por outro lado, o que vemos hoje é um aumento da dinâmica de consumo aliado à necessidade de reconhecimento social através dele. As novas tecnologias de informação também contribuem para esse processo. O funk ostentação paulista e os rolezinhos não existiriam hoje sem o acesso destes jovens a computadores pessoais, smartphones e à Internet (assista o documentário Funk Ostentação AQUI).
Por fim, vale lembrar que, a priori, os rolezinhos não têm a mesma conotação política que os protestos que ocorreram no meio do ano e que tiveram seu epicentro nas reivindicações por revogação do aumento da tarifa de ônibus. Também discordo da idéia de resistência. Rolezinho tem a ver com consumo, lazer e sociabilidade da juventude pobre ou de classe média baixa. Somente se considerarmos que o reconhecimento social na atualidade se dá muito mais via consumo do que necessariamente pela incorporação de direitos civis, políticos e sociais, aliado à repressão que vem se dando aos rolezinhos (com contornos de classe e raça) é que poderemos ver o impacto e aspecto político/social desse fenômeno. Explico-me.
Ser negro/a, mestiço/a (raça) e pobre (classe) no Brasil significa lutar contra estigmas vigentes na ordem social e que estão incorporados na pele, no cabelo, na forma de falar, de se vestir e na prática do lazer/sociabilidade da juventude do rolezinho. Quando uma multidão de jovens com esse perfil se reúne para se divertir de forma pacífica em um espaço privado, socialmente higienizado, sobre vigilância e dedicado ao consumo isso gera uma histeria generalizada que o sociólogo inglês Stanley Cohen classificou de "moral panic" (pânico moral) em seu livro Moral Panic and Devil Folks (1972), ou seja, uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas que emergem e são definidas como uma ameaça aos valores societários e interesses (ordem social). E daí, "pau" ou cadeia neles! Nesse sentido, vale a pena resgatar a fala de Paulo Duarte nos anos 1940 para fechar e resumir esse post: "Uma coisa, porém, existe e existirá com absoluta nitidez, a deliberação marcada pelo consenso unânime dos brasileiros lúcidos: o Brasil quer ser um país branco e não um país negro”.
Há nos rolezinhos uma potencialidade política/social que, na minha opinião, ainda não se desenvolveu. Mas... Quem é que sabe sobre o dia de amanhã?
Muita Paz Muito Amor!