Paçoca Amor
Para Mônica Ribeiro e Ribeiro
Paçoca, doce tipicamente nacional. Ela não existe em outros lugares do mundo e, por conta disso, se configura numa iguaria autóctone assim como a cachaça, o samba, a feijoada e a mulata, apesar de essa última estar fadada ao desaparecimento devido ao surgimento das negras metidas norte americanizadas. Há uma história que circula por aí falando do amor de um chocolate e uma paçoca. A paçoca, segundo consta, era indelével devido a seus traços. Por onde passava levantava suspiros. Grande, linda, deliciosa e de uma cor maravilhosa: um misto de açúcar mascavo com caramelo. Seu nome: Paçocão. Dizem que o amendoim, ingrediente básico da paçoca, é afrodisíaco. Talvez. Mas os segredos da paçoca estão em outros lugares, ela não pode ser simplesmente comparada a uma espécie de Caracu com ovo. Paçocão, que viria a ocupar um lugar único na vida de Chocolate Boogie (alcunha do homem chocolate) possuía esse mistério que só as verdadeiras paçocas conseguem ter. O charme, a beleza, a consistência, o sabor, esperteza, e o jeito sedutor de uma paçoca 100% nacional.
Determinada ocasião CB (pronuncia-se “Ci Bi”) e Paçocão estabeleceram uma discussão a respeito da real identidade da paçoca. A propósito, tratava-se de uma crise identitária de Paçocão que havia viajado aos Estados Unidos para passar uma temporada nas terras yankees aprendendo inglês, habilidade necessária no seu projeto de se tornar uma mercadoria globalizada. CB, que alguns brothers gringos gostavam de zoar chamando de Chocolate Bootie, se encontrava por lá há tempos. Ele não passava de um chocolatizinho interiorano metido a gringo que falava inglês errado e ganhava a vida na exportação de chocolates M&Ms para o Brasil e fazendo trambicagens. O desentendimento dos dois começara a partir dos vários pacotes de paçocas levadas por Paçocão como souvenir da terrinha buscando aplacar um pouco das saudades de Boogie do solo tupiniquim. Uma das grandes representantes dessa iguaria brasileira é a paçoça da marca Amor, que Boogie chamava desde criança de paçoquinha uma vez que a paçoca de fato para ele seria maior e mais consistente. Paçocão, de sua parte, afirmava que a paçoca Amor seria a verdadeira paçoca enquanto que aquela Boogie se referia como paçoca seria um doce de amendoim. Para CB (já disse que se pronuncia “Ci Bi”, porra!) aquilo não fazia sentido. Ele desde sempre se referiu ao suposto doce de amendoim como paçoça e a suposta paçoca como paçoquinha. Uma confusão!
Brigaram feio. Nas semanas seguintes levaram adiante sérias discussões sobre a identidade da paçoca durante noites a fio enfrentando o frio nova-iorquino bebericando longnecks de Colt 45 (malt liquor vagabundo de menos de um dólar), doses de cachaça Boazinha contrabandeada por Paçocão para a terra dos federalistas, comendo macarronadas com molhos de salsicha e fazendo exercícios sexuais nos quais encontravam prazer nas mais variadas, divertidas e contorcidas posições. No cool down do sexo eram picados durante o sono por bed bugs (percevejinhos gringos) que ficavam escondidos o dia todo em sua cama e que na madrugada surgiam se fartando do sangue de ambos e deixando como herança marcas vermelhas pelo corpo dos dois que eram coçadas com vontade durante o dia todo.
CB e Paçocão tinham uma vida relativamente tranqüila na Big Apple. Moravam num prédio velho e decadente do Harlem lotado de imigrantes em sua maioria dominicanos que falavam um espanhol caribenho indecifrável que os dois apelidaram carinhosamente de pacaiá pacaiá. O próprio zelador do prédio era dominicano e não falava absolutamente nada em inglês além do chamamento lugar comum my friend. Não havia banheiro dentro do apartamento e a cozinha, assim como o banheiro, era coletiva, suja e cheio de ratos. Paçocão reclamava da sujeira, da falta de Internet, TV e da água fria, pois o sistema de aquecimento havia quebrado bem no início do outono e eles já encontravam em pleno inverno. A falta de água quente obrigava o casal a tomar banho na academia de ginástica que freqüentavam tentando manter seus corpinhos em forma e na qual riam ao ver mulheres chocolate gordinhas moradoras do Harlem negro usando sacos preto de lixo cobrindo o corpo durante o workout com a crença de que perderiam mais calorias malhando daquela forma no mínimo peculiar.
O tédio da vida americana começara a tirar a alegria de Paçocão e ela se tornaria uma freqüentadora assídua da The New York Public Library passando dias e parte das noites debruçada sobre livros poeirentos e grossos a respeito da paçoca e sua história. Lendo descobriu - diferente do que achava - que a palavra paçoca não era um termo de origem africana, mas sim indígena. Vinha do tupi pa’soka, uma junção de paba (terminar) com soka (socar). O termo fazia referência à maneira como a comida que a pasoka indígena era produzida: uma mistura de carne assada desfiada com farinha de milho preparada socando a carne e a farinha no pilão.
A paçoca original de carne se aproxima em muito das comidas degustadas por tropeiros devido ao seu alto valor calórico e nutritivo, ou seja, é um prato que pequenas porções podem fornecer energia suficiente para grandes caminhadas no interior da inóspita mata fechada além de seus ingredientes serem facilmente transportados e de rápido preparo. Não é coincidência ela ter se integrado a dieta dos bandeirantes que desbravavam o interior e sertões brasileiros dizimando indígenas, buscando riquezas minerais e recapturando negros fugidos. Historicamente bandeirantes já são associados a origem indígena, sendo alguns em parte caboclos ou mamelucos (descendentes de mistura de indígenas com brancos) ou ainda cafuzos (descendentes de negros com indígenas), bem diferente da pureza portuguesa que lhes é sempre atribuída pela historiografia. Dizia-se que o infame herói paulista Domingos Jorge Velho (1641-1703), bandeirante responsável pela destruição do Quilombo dos Palmares com suas tropas mestiças, era um afamado comedor de paçoca que se casou apenas em idade avançada tendo antes várias concubinas indígenas. A mesma euforia por paçoca se diz a respeito de Anhanguera (Diabo Velho), alcunha tupi pela qual era conhecido outro famoso bandeirante paulista: Bartolomeu Bueno dos Santos (1672-1740). Paçocas e bandeirantes, uma história complexa!
Até hoje há cidades espalhadas por alguns estados brasileiros nas quais é possível degustar a paçoça salgada. Em Minas Gerais temos a Festa Nacional da Paçoca. Em Pilar do Sul, interior de São Paulo, acontece anualmente o Festival da Paçoça e no Paraná a paçoca é parte do cardápio tradicional do estado. Durante as festividades juninas no nordeste brasileiro, a paçoca é um prato indispensável. Todavia, ninguém sabe explicar muito bem como a paçoca ficou associada, em todo o imaginário popular, a um delicioso doce tradicional produzido a partir de amendoim, farinha de mandioca e açúcar. Há controvérsias. Alguns dizem que isso tem haver com as mudanças alimentares da região onde a paçoca se originou, os estados de São Paulo e Goiás. Entretanto, para sua decepção, Paçocão não conseguia obter informações confiáveis sobre a origem da paçoca doce contemporânea, a nossa deliciosa paçoquinha. Foi aí que um inquérito de ordem identitária e existencial tomou a direção de seu interesse.
Sua pesquisa focou, então, outros quitutes compatriotas. As descobertas se amparavam em livros que moldaram a identidade nacional e que traziam a culinária como um lugar privilegiado para se pensar a elaboração de tradições, leia-se aqui Açúcar: uma Sociologia do Doce (1932) e Casa Grande & Senzala (1933), ambos do saudoso Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre (1900-1987). Cada doce, nesses e outros livros, tinha uma história específica como a bananinha caramelizada, o doce de abóbora, o pé de moleque, o brigadeiro, o quindim, a pamonha doce, a tapioca, o bolo de rolo, o doce de buriti, o pudim de leite, o curau de milho, a rapadura, a goiabada, o beijo de mulata, o papo de anjo, o bom-bocado, o manjar, a cajuada, a cocada, o merengue, a baba de moça, o beijinho, o cajuzinho, a canjica, o doce de caju, o doce de pequi, o melado de tacho, as baias de café, o chuvisco, o pão de cuca, o doce de pinhão e a torta de maçã "alemã". Ou seja, Paçocão descobriu que seus parentes, meio irmãos e irmãs, eram muitos e variados. Mas todos eles tinham em comum o aspecto docificado, atrativo possibilitado por uma especiaria: o açúcar.
Mais que isso. Numa leitura atenta de Açúcar: uma Sociologia do Doce, ela entendeu que Freyre olhava para essa iguaria como a responsável por juntar culturas e povos através da culinária. Era como se o açúcar fosse a liga que organiza a mistura fornecendo consistência e mantendo os diferentes ingredientes juntos. E a paçoca doce? De onde viria? O que significaria? Não importava muito como ela se elaborou, pensou, mas sim o significado e a origem de seus componentes. Assim, buscou entender cada um dos seus componentes em busca de pistas.
A paçoca é feita de amendoim torrado e pilado com farinha de mandioca e açúcar. Lendo livros de folclore, dicionários etimológicos e estudos antropológicos ela descobriu que tanto o amendoim como a farinha tem sua origem em tribos indígenas da América do Sul e faziam parte da dieta alimentar desses grupos. O termo amendoim é originário do tupi-guarani mãdu'bi (ou mãdu'i) significando "enterrado". Há algumas lendas indígenas sobre o surgimento do amendoim. Uma delas afirma que havia um menino chamado Doinmã que defecava amendoins numa panela com o auxílio da mãe. Um dia a mãe saiu e deixou Doinmã aos cuidados do tio. O menino sentiu vontade de defecar e pediu a panela ao tio que, não sabendo da história, mandou o sobrinho fazer suas necessidades fora da casa. O garoto saiu e defecou na panela. Horas depois o tio saiu da casa e, ao ver a panela, fartou-se de amendoim. Minutos seguiriam até ele descobrir a origem do amendoim e, extremamente irritado, surrou Doinmã até a morte. Com medo da reação da irmã, enterrou o corpo do garoto próximo a um rio. Todos lamentaram e choraram o sumiço de Doinmã, inclusive o tio. Passado algum tempo, uma planta surgira próximo ao rio que a mãe de Doinmã se banhava. Um dia, no momento em que a mãe se secava do banho, ela ouviu um choro igual ao de seu filho. Notou que a lamúria vinha da planta. Ao se aproximar dela e arrancar a mesma da terra, notou que nas raízes estavam os amendoins de Doinmã.
Mandioca também tem origem tupi vindo do termo mãdi'og, mandi-ó ou mani-oca cujo significado é "casa de Mani". Mani é a deusa benfazeja dos guaranis que se transforma em mani-oca. A lenda conta que ela seria a neta de um chefe indígena. Ao saber que a filha estava grávida de um rebento bastardo, o pai quis punir aquele que desonrara sua filha. A filha negou ter tido relação com qualquer homem mesmo após sofrer castigos impostos pelo pai. Decidido a matá-la, o pai foi impedido por um homem branco que lhe apareceu em sonho afirmando que a filha era de fato inocente não tendo tido relação com nenhum homem. Para surpresa da tribo, nove meses depois uma criança extremamente branca nasceu. Foi dado o nome de Mani à criança que andava e falava precocemente. Ao final de um ano, sem aparentar nenhuma doença ou dor, Mani caiu morta. Foi enterrada dentro de casa e a cova foi regada por determinado período seguindo o costume da tribo. Ao cabo de certo tempo uma planta desconhecida brotou, cresceu e deu frutos. Pássaros embriagaram-se ao comer os frutos da planta, fato que aumentou a superstição dos indígenas. Passado mais algum tempo, a terra fendeu-se. Ao cavar, os indígenas julgaram reconhecer o corpo de Mani nas raízes da planta. Ao comê-las eles aprenderam a usar a mandioca.
Não há unanimidade sobre a origem do açúcar. Há histórias que falam de sua existência há 6000 AC, mas estudos mais recentes apontam uma história mais remota, algo em torno de 2000 anos. Sabe-se que o primeiro lugar a cultivar cana de açúcar foi a Nova Guiné e de lá o cultivo se expandiu para as Filipinas, Fuji e outras ilhas menores localizadas no sudoeste do Oceano Pacífico. Os indianos, persas e chineses foram os primeiros a processarem açúcar oriundo da cana e a iguaria chegou a Europa levada por Alexandre Magno em suas campanhas empreendidas no Oriente. Séculos depois o açúcar seria explorado pelo comércio de especiarias que se estabeleceu no renascimento. Ele era visto como um produto sofisticado e medicinal, vendido em boticários e acessível somente aos indivíduos com alto poder aquisitivo. A produção de cana-de-açúcar foi trazida por portugueses para o Brasil como meio de explorar a nova colônia e o sistema de plantation (monocultura + mão de obra escrava + latifúndio) prevaleceu. O açúcar produzido no Brasil tinha aspecto escuro assim como a pele dos escravos que trabalhavam na sua produção em engenhos. Era depurado primeiro em blocos duros de cor caramelada ou marrom: o açúcar mascavo. Depois vieram as formas de refinamento que produziam os vários outros tipos de açúcar como o demerada, o cristal e o refinado.
Sim, havia uma enorme história por trás da paçoca doce. Não importava mais como ela deixara de ser salgada. Mas importava que o açúcar houvesse cruzado sua trajetória, trazendo novas perspectivas, unindo tradições e culturas, solidificando uniões. O açúcar mascavo, de cor caramelizada e marrom, não o açúcar branco refinado e ausente de cor e sentimento. Não é à toa que até hoje associamos o amor a algo doce, suave e tranqüilo. A paixão é arrebatadora, embriaga, tira a razão e nos faz cometer loucuras. Mas o amor é calmo e para ser degustado aos poucos. Amor, a melhor definição para o açúcar e a paçoca. Amor era o que se via nas lendas indígenas referentes ao amendoim (amor de mãe e filho), da mandioca (o amor proibido da indígena com o homem branco) e no açúcar (aquele que une povos e culturas através da culinária, do sabor e de receitas). Mas o açúcar, assim como o amor, tem a sua faceta sinistra. O açúcar também poderia matar. Quantos homens e mulheres negros morreram no período da escravidão vítimas do trabalho duro, brutal e desumano do plantio da cana e da produção de açúcar nos engenhos? Alguns foram deliberadamente assassinados. E o que falar dos indígenas dizimados pelos europeus para que em suas terras a cana pudesse ser cultivada? E mais contemporaneamente, já ouviu falar da história dos três brancos assassinos? Sal, trigo e... açúcar!
Paçocão, após semanas enfiadas dia e noite na biblioteca, saiu do prédio localizado na Rua 42 da ilha de Manhattan totalmente atordoada aquela noite. Tantas histórias, idéias e tradições estavam por trás da sua trajetória. Passando pela Times Square ela notou uma loja enorme da M&Ms. Sentiu pena dos turistas que enchiam suas sacolas de compras com o produto gringo ao pensar no sabor de seus doces locais. Não, o M&Ms não teria nem um terço da história dessa singela iguaria nacional chamada paçoca e que até hoje é vendida em botecos, bares, pé sujos, mercearias, supermercados, camelôs e unindo amantes através do simples gesto de degustar uma paçoca juntos.
Seguiu caminhando até a estação Times Square e dentro da mesma andou por um longo e entediante corredor branco alcançando o Port Authority. De lá tomou o trem A em direção ao Harlem. Sua cabeça girava entre pensamentos. Ao sair do metrô na estação da Rua 125 enfrentou quatro quarteirões debaixo de forte neve se deparando com faces negras em seu caminho até chegar ao prédio velho da Rua 123, entre as avenidas Amsterdam e Broadway, onde morava dividindo o espaço com ratos, baratas, bed bugs, imigrantes ilegais e sem água quente.
Ao subir os degraus da entrada do prédio, escorregou no gelo e caiu de bunda na neve branca que cobria toda a calçada e que os zeladores pacaiá pacaiá não haviam tirado aquele dia. Levantou se limpando da neve molhada, xingando e amaldiçoando os velhos coitados. Ao entrar no prédio e foi recebida por uma agradável massa de ar quente. Subiu as escadas sujas e chegando ao seu andar notou que a sujeira aumentava. Abriu a porta do corredor e viu seu homem CB cozinhando. Ao notar sua presença, ele respondeu com um sorriso sem graça. Cardápio: macarrão com salsicha, duas doses de Boazinha para abrir o apetite e duas Colt 45 de US$ 0.90 cada. O computador tocava a trilha sonora da noite: Love Supreme, John Coltrane. Sobremesa: a última paçoca Amor do pacote contrabandeado por Paçocão para a gringa, a ser dividida por dois. Depois de jantar, discutiram para ver quem comeria a paçoca sozinho ou como a dividiriam, enquanto CB preparava um café. Numa ida ao banheiro de Paçocão, CB (“Ci Bi”, caralho!), numa atitude egoísta, enfiou todo o doce na boca e comeu extasiado. Brigaram. Não treparam. Na noite seguinte Paçocão tomou um avião de volta às terras tupiniquins e seus meios-irmãos e irmãs doces. Numa tentativa de reconciliação, o homem chocolate até hoje envia enormes caixas de M&Ms da loja da Times Square para Paçocão que os vende fazendo fortuna. A cada novo pacote que chega pelo correio ela olha desconsolada, suspira e diz: “Se ele enviasse ao menos uma paçoca Amor...”
Para Mônica Ribeiro e Ribeiro
Paçoca, doce tipicamente nacional. Ela não existe em outros lugares do mundo e, por conta disso, se configura numa iguaria autóctone assim como a cachaça, o samba, a feijoada e a mulata, apesar de essa última estar fadada ao desaparecimento devido ao surgimento das negras metidas norte americanizadas. Há uma história que circula por aí falando do amor de um chocolate e uma paçoca. A paçoca, segundo consta, era indelével devido a seus traços. Por onde passava levantava suspiros. Grande, linda, deliciosa e de uma cor maravilhosa: um misto de açúcar mascavo com caramelo. Seu nome: Paçocão. Dizem que o amendoim, ingrediente básico da paçoca, é afrodisíaco. Talvez. Mas os segredos da paçoca estão em outros lugares, ela não pode ser simplesmente comparada a uma espécie de Caracu com ovo. Paçocão, que viria a ocupar um lugar único na vida de Chocolate Boogie (alcunha do homem chocolate) possuía esse mistério que só as verdadeiras paçocas conseguem ter. O charme, a beleza, a consistência, o sabor, esperteza, e o jeito sedutor de uma paçoca 100% nacional.
Determinada ocasião CB (pronuncia-se “Ci Bi”) e Paçocão estabeleceram uma discussão a respeito da real identidade da paçoca. A propósito, tratava-se de uma crise identitária de Paçocão que havia viajado aos Estados Unidos para passar uma temporada nas terras yankees aprendendo inglês, habilidade necessária no seu projeto de se tornar uma mercadoria globalizada. CB, que alguns brothers gringos gostavam de zoar chamando de Chocolate Bootie, se encontrava por lá há tempos. Ele não passava de um chocolatizinho interiorano metido a gringo que falava inglês errado e ganhava a vida na exportação de chocolates M&Ms para o Brasil e fazendo trambicagens. O desentendimento dos dois começara a partir dos vários pacotes de paçocas levadas por Paçocão como souvenir da terrinha buscando aplacar um pouco das saudades de Boogie do solo tupiniquim. Uma das grandes representantes dessa iguaria brasileira é a paçoça da marca Amor, que Boogie chamava desde criança de paçoquinha uma vez que a paçoca de fato para ele seria maior e mais consistente. Paçocão, de sua parte, afirmava que a paçoca Amor seria a verdadeira paçoca enquanto que aquela Boogie se referia como paçoca seria um doce de amendoim. Para CB (já disse que se pronuncia “Ci Bi”, porra!) aquilo não fazia sentido. Ele desde sempre se referiu ao suposto doce de amendoim como paçoça e a suposta paçoca como paçoquinha. Uma confusão!
Brigaram feio. Nas semanas seguintes levaram adiante sérias discussões sobre a identidade da paçoca durante noites a fio enfrentando o frio nova-iorquino bebericando longnecks de Colt 45 (malt liquor vagabundo de menos de um dólar), doses de cachaça Boazinha contrabandeada por Paçocão para a terra dos federalistas, comendo macarronadas com molhos de salsicha e fazendo exercícios sexuais nos quais encontravam prazer nas mais variadas, divertidas e contorcidas posições. No cool down do sexo eram picados durante o sono por bed bugs (percevejinhos gringos) que ficavam escondidos o dia todo em sua cama e que na madrugada surgiam se fartando do sangue de ambos e deixando como herança marcas vermelhas pelo corpo dos dois que eram coçadas com vontade durante o dia todo.
CB e Paçocão tinham uma vida relativamente tranqüila na Big Apple. Moravam num prédio velho e decadente do Harlem lotado de imigrantes em sua maioria dominicanos que falavam um espanhol caribenho indecifrável que os dois apelidaram carinhosamente de pacaiá pacaiá. O próprio zelador do prédio era dominicano e não falava absolutamente nada em inglês além do chamamento lugar comum my friend. Não havia banheiro dentro do apartamento e a cozinha, assim como o banheiro, era coletiva, suja e cheio de ratos. Paçocão reclamava da sujeira, da falta de Internet, TV e da água fria, pois o sistema de aquecimento havia quebrado bem no início do outono e eles já encontravam em pleno inverno. A falta de água quente obrigava o casal a tomar banho na academia de ginástica que freqüentavam tentando manter seus corpinhos em forma e na qual riam ao ver mulheres chocolate gordinhas moradoras do Harlem negro usando sacos preto de lixo cobrindo o corpo durante o workout com a crença de que perderiam mais calorias malhando daquela forma no mínimo peculiar.
O tédio da vida americana começara a tirar a alegria de Paçocão e ela se tornaria uma freqüentadora assídua da The New York Public Library passando dias e parte das noites debruçada sobre livros poeirentos e grossos a respeito da paçoca e sua história. Lendo descobriu - diferente do que achava - que a palavra paçoca não era um termo de origem africana, mas sim indígena. Vinha do tupi pa’soka, uma junção de paba (terminar) com soka (socar). O termo fazia referência à maneira como a comida que a pasoka indígena era produzida: uma mistura de carne assada desfiada com farinha de milho preparada socando a carne e a farinha no pilão.
A paçoca original de carne se aproxima em muito das comidas degustadas por tropeiros devido ao seu alto valor calórico e nutritivo, ou seja, é um prato que pequenas porções podem fornecer energia suficiente para grandes caminhadas no interior da inóspita mata fechada além de seus ingredientes serem facilmente transportados e de rápido preparo. Não é coincidência ela ter se integrado a dieta dos bandeirantes que desbravavam o interior e sertões brasileiros dizimando indígenas, buscando riquezas minerais e recapturando negros fugidos. Historicamente bandeirantes já são associados a origem indígena, sendo alguns em parte caboclos ou mamelucos (descendentes de mistura de indígenas com brancos) ou ainda cafuzos (descendentes de negros com indígenas), bem diferente da pureza portuguesa que lhes é sempre atribuída pela historiografia. Dizia-se que o infame herói paulista Domingos Jorge Velho (1641-1703), bandeirante responsável pela destruição do Quilombo dos Palmares com suas tropas mestiças, era um afamado comedor de paçoca que se casou apenas em idade avançada tendo antes várias concubinas indígenas. A mesma euforia por paçoca se diz a respeito de Anhanguera (Diabo Velho), alcunha tupi pela qual era conhecido outro famoso bandeirante paulista: Bartolomeu Bueno dos Santos (1672-1740). Paçocas e bandeirantes, uma história complexa!
Até hoje há cidades espalhadas por alguns estados brasileiros nas quais é possível degustar a paçoça salgada. Em Minas Gerais temos a Festa Nacional da Paçoca. Em Pilar do Sul, interior de São Paulo, acontece anualmente o Festival da Paçoça e no Paraná a paçoca é parte do cardápio tradicional do estado. Durante as festividades juninas no nordeste brasileiro, a paçoca é um prato indispensável. Todavia, ninguém sabe explicar muito bem como a paçoca ficou associada, em todo o imaginário popular, a um delicioso doce tradicional produzido a partir de amendoim, farinha de mandioca e açúcar. Há controvérsias. Alguns dizem que isso tem haver com as mudanças alimentares da região onde a paçoca se originou, os estados de São Paulo e Goiás. Entretanto, para sua decepção, Paçocão não conseguia obter informações confiáveis sobre a origem da paçoca doce contemporânea, a nossa deliciosa paçoquinha. Foi aí que um inquérito de ordem identitária e existencial tomou a direção de seu interesse.
Sua pesquisa focou, então, outros quitutes compatriotas. As descobertas se amparavam em livros que moldaram a identidade nacional e que traziam a culinária como um lugar privilegiado para se pensar a elaboração de tradições, leia-se aqui Açúcar: uma Sociologia do Doce (1932) e Casa Grande & Senzala (1933), ambos do saudoso Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre (1900-1987). Cada doce, nesses e outros livros, tinha uma história específica como a bananinha caramelizada, o doce de abóbora, o pé de moleque, o brigadeiro, o quindim, a pamonha doce, a tapioca, o bolo de rolo, o doce de buriti, o pudim de leite, o curau de milho, a rapadura, a goiabada, o beijo de mulata, o papo de anjo, o bom-bocado, o manjar, a cajuada, a cocada, o merengue, a baba de moça, o beijinho, o cajuzinho, a canjica, o doce de caju, o doce de pequi, o melado de tacho, as baias de café, o chuvisco, o pão de cuca, o doce de pinhão e a torta de maçã "alemã". Ou seja, Paçocão descobriu que seus parentes, meio irmãos e irmãs, eram muitos e variados. Mas todos eles tinham em comum o aspecto docificado, atrativo possibilitado por uma especiaria: o açúcar.
Mais que isso. Numa leitura atenta de Açúcar: uma Sociologia do Doce, ela entendeu que Freyre olhava para essa iguaria como a responsável por juntar culturas e povos através da culinária. Era como se o açúcar fosse a liga que organiza a mistura fornecendo consistência e mantendo os diferentes ingredientes juntos. E a paçoca doce? De onde viria? O que significaria? Não importava muito como ela se elaborou, pensou, mas sim o significado e a origem de seus componentes. Assim, buscou entender cada um dos seus componentes em busca de pistas.
A paçoca é feita de amendoim torrado e pilado com farinha de mandioca e açúcar. Lendo livros de folclore, dicionários etimológicos e estudos antropológicos ela descobriu que tanto o amendoim como a farinha tem sua origem em tribos indígenas da América do Sul e faziam parte da dieta alimentar desses grupos. O termo amendoim é originário do tupi-guarani mãdu'bi (ou mãdu'i) significando "enterrado". Há algumas lendas indígenas sobre o surgimento do amendoim. Uma delas afirma que havia um menino chamado Doinmã que defecava amendoins numa panela com o auxílio da mãe. Um dia a mãe saiu e deixou Doinmã aos cuidados do tio. O menino sentiu vontade de defecar e pediu a panela ao tio que, não sabendo da história, mandou o sobrinho fazer suas necessidades fora da casa. O garoto saiu e defecou na panela. Horas depois o tio saiu da casa e, ao ver a panela, fartou-se de amendoim. Minutos seguiriam até ele descobrir a origem do amendoim e, extremamente irritado, surrou Doinmã até a morte. Com medo da reação da irmã, enterrou o corpo do garoto próximo a um rio. Todos lamentaram e choraram o sumiço de Doinmã, inclusive o tio. Passado algum tempo, uma planta surgira próximo ao rio que a mãe de Doinmã se banhava. Um dia, no momento em que a mãe se secava do banho, ela ouviu um choro igual ao de seu filho. Notou que a lamúria vinha da planta. Ao se aproximar dela e arrancar a mesma da terra, notou que nas raízes estavam os amendoins de Doinmã.
Mandioca também tem origem tupi vindo do termo mãdi'og, mandi-ó ou mani-oca cujo significado é "casa de Mani". Mani é a deusa benfazeja dos guaranis que se transforma em mani-oca. A lenda conta que ela seria a neta de um chefe indígena. Ao saber que a filha estava grávida de um rebento bastardo, o pai quis punir aquele que desonrara sua filha. A filha negou ter tido relação com qualquer homem mesmo após sofrer castigos impostos pelo pai. Decidido a matá-la, o pai foi impedido por um homem branco que lhe apareceu em sonho afirmando que a filha era de fato inocente não tendo tido relação com nenhum homem. Para surpresa da tribo, nove meses depois uma criança extremamente branca nasceu. Foi dado o nome de Mani à criança que andava e falava precocemente. Ao final de um ano, sem aparentar nenhuma doença ou dor, Mani caiu morta. Foi enterrada dentro de casa e a cova foi regada por determinado período seguindo o costume da tribo. Ao cabo de certo tempo uma planta desconhecida brotou, cresceu e deu frutos. Pássaros embriagaram-se ao comer os frutos da planta, fato que aumentou a superstição dos indígenas. Passado mais algum tempo, a terra fendeu-se. Ao cavar, os indígenas julgaram reconhecer o corpo de Mani nas raízes da planta. Ao comê-las eles aprenderam a usar a mandioca.
Não há unanimidade sobre a origem do açúcar. Há histórias que falam de sua existência há 6000 AC, mas estudos mais recentes apontam uma história mais remota, algo em torno de 2000 anos. Sabe-se que o primeiro lugar a cultivar cana de açúcar foi a Nova Guiné e de lá o cultivo se expandiu para as Filipinas, Fuji e outras ilhas menores localizadas no sudoeste do Oceano Pacífico. Os indianos, persas e chineses foram os primeiros a processarem açúcar oriundo da cana e a iguaria chegou a Europa levada por Alexandre Magno em suas campanhas empreendidas no Oriente. Séculos depois o açúcar seria explorado pelo comércio de especiarias que se estabeleceu no renascimento. Ele era visto como um produto sofisticado e medicinal, vendido em boticários e acessível somente aos indivíduos com alto poder aquisitivo. A produção de cana-de-açúcar foi trazida por portugueses para o Brasil como meio de explorar a nova colônia e o sistema de plantation (monocultura + mão de obra escrava + latifúndio) prevaleceu. O açúcar produzido no Brasil tinha aspecto escuro assim como a pele dos escravos que trabalhavam na sua produção em engenhos. Era depurado primeiro em blocos duros de cor caramelada ou marrom: o açúcar mascavo. Depois vieram as formas de refinamento que produziam os vários outros tipos de açúcar como o demerada, o cristal e o refinado.
Sim, havia uma enorme história por trás da paçoca doce. Não importava mais como ela deixara de ser salgada. Mas importava que o açúcar houvesse cruzado sua trajetória, trazendo novas perspectivas, unindo tradições e culturas, solidificando uniões. O açúcar mascavo, de cor caramelizada e marrom, não o açúcar branco refinado e ausente de cor e sentimento. Não é à toa que até hoje associamos o amor a algo doce, suave e tranqüilo. A paixão é arrebatadora, embriaga, tira a razão e nos faz cometer loucuras. Mas o amor é calmo e para ser degustado aos poucos. Amor, a melhor definição para o açúcar e a paçoca. Amor era o que se via nas lendas indígenas referentes ao amendoim (amor de mãe e filho), da mandioca (o amor proibido da indígena com o homem branco) e no açúcar (aquele que une povos e culturas através da culinária, do sabor e de receitas). Mas o açúcar, assim como o amor, tem a sua faceta sinistra. O açúcar também poderia matar. Quantos homens e mulheres negros morreram no período da escravidão vítimas do trabalho duro, brutal e desumano do plantio da cana e da produção de açúcar nos engenhos? Alguns foram deliberadamente assassinados. E o que falar dos indígenas dizimados pelos europeus para que em suas terras a cana pudesse ser cultivada? E mais contemporaneamente, já ouviu falar da história dos três brancos assassinos? Sal, trigo e... açúcar!
Paçocão, após semanas enfiadas dia e noite na biblioteca, saiu do prédio localizado na Rua 42 da ilha de Manhattan totalmente atordoada aquela noite. Tantas histórias, idéias e tradições estavam por trás da sua trajetória. Passando pela Times Square ela notou uma loja enorme da M&Ms. Sentiu pena dos turistas que enchiam suas sacolas de compras com o produto gringo ao pensar no sabor de seus doces locais. Não, o M&Ms não teria nem um terço da história dessa singela iguaria nacional chamada paçoca e que até hoje é vendida em botecos, bares, pé sujos, mercearias, supermercados, camelôs e unindo amantes através do simples gesto de degustar uma paçoca juntos.
Seguiu caminhando até a estação Times Square e dentro da mesma andou por um longo e entediante corredor branco alcançando o Port Authority. De lá tomou o trem A em direção ao Harlem. Sua cabeça girava entre pensamentos. Ao sair do metrô na estação da Rua 125 enfrentou quatro quarteirões debaixo de forte neve se deparando com faces negras em seu caminho até chegar ao prédio velho da Rua 123, entre as avenidas Amsterdam e Broadway, onde morava dividindo o espaço com ratos, baratas, bed bugs, imigrantes ilegais e sem água quente.
Ao subir os degraus da entrada do prédio, escorregou no gelo e caiu de bunda na neve branca que cobria toda a calçada e que os zeladores pacaiá pacaiá não haviam tirado aquele dia. Levantou se limpando da neve molhada, xingando e amaldiçoando os velhos coitados. Ao entrar no prédio e foi recebida por uma agradável massa de ar quente. Subiu as escadas sujas e chegando ao seu andar notou que a sujeira aumentava. Abriu a porta do corredor e viu seu homem CB cozinhando. Ao notar sua presença, ele respondeu com um sorriso sem graça. Cardápio: macarrão com salsicha, duas doses de Boazinha para abrir o apetite e duas Colt 45 de US$ 0.90 cada. O computador tocava a trilha sonora da noite: Love Supreme, John Coltrane. Sobremesa: a última paçoca Amor do pacote contrabandeado por Paçocão para a gringa, a ser dividida por dois. Depois de jantar, discutiram para ver quem comeria a paçoca sozinho ou como a dividiriam, enquanto CB preparava um café. Numa ida ao banheiro de Paçocão, CB (“Ci Bi”, caralho!), numa atitude egoísta, enfiou todo o doce na boca e comeu extasiado. Brigaram. Não treparam. Na noite seguinte Paçocão tomou um avião de volta às terras tupiniquins e seus meios-irmãos e irmãs doces. Numa tentativa de reconciliação, o homem chocolate até hoje envia enormes caixas de M&Ms da loja da Times Square para Paçocão que os vende fazendo fortuna. A cada novo pacote que chega pelo correio ela olha desconsolada, suspira e diz: “Se ele enviasse ao menos uma paçoca Amor...”