sábado, 28 de dezembro de 2013

Aristocrata Clube


Racismo é um tema bastante complicado e difícil de ser discutido no Brasil. Contudo, ocorreram muitos avanços nos últimos 20 anos. O documentário Aristocrata, dirigido por Jazmin Pinho e Aza Pinho (2004), explora a história de uma associação recreativa de negros de classe média fundada na década de 1960. Naquela época, havia a convivência com práticas que soam contraditórias: a afirmação da idéia de democracia racial, ou seja, ausência de racismo entre nós, ao mesmo que ocorriam práticas explícitas de racismo. Um dos espaços em que a discriminação contra negros e negras se dava abertamente eram aqueles associados ao lazer e sociabilidade. Esse é o argumento utilizado pelos entrevistados do documentário para justificar o surgimento do Aristocrata Clube.

Entretanto, a história do Aristocrata pode ser colocada num contexto mais amplo. Clubes negros existem em São Paulo desde os anos 1930 e boa parte deles são remanescentes da Frente Negra Brasileira (FNB), fundada naquela década. A FNB foi fechada pelo regime ditatorial de Getúlio Vargas, o Estado Novo, em 1937, uma vez que todas as organizações políticas nesse período foram colocadas na ilegalidade e a FNB havia acabado de se transformar em partido político. Mas nessa época clubes como o 28 de Setembro, de Jundiaí, o 13 de Maio, de Piracicaba, e o José do Patrocínio, de Rio Claro, já haviam sido fundados no interior do estado. Todos eles eram espaços de sociabilidade de uma pequena e precária classe média negra constituída majoritarimente por funcionários públicos.

Nos anos 1950 e 1960 outros clubes surgiram. Seus fundadores eram profissionais liberais que atuavam como médicos, advogados, professores além de pequenos comerciantes e funcionários públicos de carreira. Um dos mais famosos clubes desse período é o Renascença Clube, criado em 1951 na cidade do Rio de Janeiro (leia mais AQUI) e que ficaria conhecido na década seguinte por promover concursos de beleza de mulheres negras (abaixo fotos das garotas frequentadoras do Aristocrata e conhecidas à época como "aristogatas").


Assistir o documentário Aristocrata é adentrar a história de sociabilidade, lazer e relações raciais que permeia a trajetória da população negra em São Paulo e no Brasil. Porém, diferente do argumento utilizado pelo/as entrevistado/as para justificar a decadência do clube, a falta de interesse pelo clube demonstrada pela geração de filho/as do/as fundadore/as explica apenas em parte o problema de continuidade da associação. O outro lado da moeda diz respeito a dificuldade enfrentada por essa pequena classe média em repassar o lugar de classe conquistado por ela para seus filhos e filhas, em outras palavras, a difícil tarefa enfrentada por negro/as de manter e/ou reproduzir riqueza e status social. Mas isso já seria história para outro post. Assistam o vídeo! Leia mais sobre o Aristocrata acessando uma reportagem feita pela revista Época São Paulo (AQUI).

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

A Mulata Exportação


A Mulata Exportação (da série “Grandes Figuras da Negritude Brasileira: ensaios em profundidade do Dr. Altamiro Brandão, Ph.D. em Negrologia”)


O Brasil é um país abençoado. Quase não vivenciou guerras em toda a sua história (matamos uns paraguaios, mas quem se importa?), raramente experimenta adversidades causadas pela mãe natureza como vulcões, terremotos, tufões, tornados - e outras desgraças mais - e não possui conflitos étnicos e raciais vivendo sobre a égide do que intelectuais da academia e até os de boteco chamam de democracia racial. Ou seja, a idéia de que todos por aqui, independentemente da cor, têm as mesmas chances e que esse besteirol de preto-preto/branco-branco, tão comum entre os patrícios anglo-saxões do norte, não tem vez em solo tupiniquim. Somos um povo mestiço, formado pelo alegre encontro das três raças e culturas, já dizia o grandíssimo mestre Giba Freyre, em seu catatau “Barraco Grande e Senzala Chic” (1933): o branco europeu, o negro africano e o indígena originário da própria terrinha. Nosso gigante sul-americano também tem uma economia vibrante e, desde o século XVII, participamos com afinco do comércio internacional saindo da venda de especiarias, como açúcar no além-mar entre os séculos XVI e XVII, passando pelo ouro no século XVIII, café no XIX e chegando atualmente aos jatinhos da Embraer. Brasil Brasil. “God can be generous and blessing America”, mas com certeza Deus é brasileiro e corinthiano. Ainda dentre as tradicionais mercadorias negociadas pela grande nação tupiniquim, uma tem destaque no cenário internacional do entretenimento: a mulata exportação. Contudo, para entender o desenvolvimento dessa grande figura da negritude brasileira, é necessário entender o seu desenvolvimento histórico, econômico e social. A mulata é uma figura que arranca suspiros de todos os homens com sua beleza e sensualidade. Filha do encontro entre raças, a branca e a negra, a mulata reservou aquilo que as duas tinham de melhor, contrariando o pensamento de célebres doutores europeus (um nobre francês agraciado Gobineau e um italiano com nome de vinho vagabundo, Lombroso) e até mesmo brasileiros (Nina Rodrigues) que no final do século XIX diziam que o mestiço era um degenerado, fraco e vagabundo que levaria nosso gigante sul-americano ao fracasso como nação. A mulata é prova do contrário, é a nossa grandeza genética. Como bem se sabe, mulatas não existem em todos os lugares da mesma forma que no nosso Brasilzão. Nos EUA, por exemplo, a mulata é Black ou African-American, nomes estranhos que escondem sua origem mestiça. Mas entre o povo preto americano e mesmo entre brancos sabe-se muito bem da admiração pela beleza e sensualidade das mulheres classificadas como light-skinned, as mulatas de um passado norte-americano distante: veja aí as atrizes Halle Berry e Vanessa Williams, e as cantoras Alicia Keys e Beyoncé Knowles. Mulatas dos pés a cabeça seriam no Brasil, mas na grande nação dos federalistas nada além de Blacks ou African-American ou light-skinned women. No caso da África do Sul, houve um grosseria absurda: colocaram todas as mestiças sobre a categoria “colored.” Estupidez e falta de criatividade. Mas voltando ao Brasa, há famosas mulatas que povoam o universo de nossa literatura: Rita Bahiana, figura central no clássico “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, escrito em 1890, Escrava Isaura, do livro de título homônimo publicado por Bernardo Guimarães em 1875, que dizia-se branca na obra mas que, na verdade, era uma mulatinha formosa e educada. Lembremos também da sensual e linda Gabriela da obra de Jorge Amado, “Gabriela, Cravo e Canela”, de 1958. Entretanto, muitos têm problemas com a categoria mulata/mulato. De acordo com estes, o termo é pejorativo por fazer referência ao animal mula, que é produto do cruzamento do cavalo com burra ou do jumento com égua. Seja verdade ou não, o que importa é que mulata teve períodos de glória na história do gigante sul-americano. Exaltada nas modinhas de carnaval como na letra de “O Teu Cabelo Não Nega”, escrita por Lamartine Babo em 1931, e que não reproduzo aqui por falta de espaço, e em concursos de beleza como o Rainha das Mulatas, organizado pelo Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento e do mulato Guerreiro Ramos, nos anos 1940, que revelou a exuberante Mercedes Batista, e o do Clube Renascença, celeiro de mulatas nos anos 1970. Foi justamente nessa época que a mulata exportação foi concebida pelas idéias de visionários como o radialista Oswaldo Sargentelli, que cunhou o termo “Mulata Sargentelli”, e foi elevado à figura de “mulatólogo”: “mulatinha bonitinha do ziriguidum, meu amigo! Boa boa, ops, oba oba...” Mulatas mulatas... Representação do meu Brasil varonil. No corpo pancadão a marca da miscigenação, nos pés o dom de sambar e na cama o prazer de amar. Línguas maldosas insistiam em epítetos fora de sentido como o clássico: “Branca pra casar, mulata pra fornicar e preta pra trabalhar”... Mentiras deslavadas! O próprio redator deste texto confessa que só se casou com uma branca por uma peça pregada da vida: o amor. Mas antes disso várias mulatas passaram pelos meus braços satisfazendo meus mais profundos desejos. Foi a partir dos anos 1960 e 1970 que a categoria mulata ganhou uma feição institucional no que ficou conhecido como “Show de Mulatas”. Em casas noturnas da saudosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro elas dançavam, sambavam e entretinham turistas nacionais e estrangeiros exibindo seus dotes trajando biquínis minúsculos que ressaltavam ainda mais as formas corporais já avolumadas. Passamos a exportar mulatas. Sim, exportar, pois elas começaram a viajar além-mar para mostrar a esses gringos de cintura dura o que a mistura racial tinha criado nos trópicos, contrariando as teorias dos doutores Gobineau, Lombroso e Rodrigues. E foi daí que surgiu a categoria “mulata exportação”: aquela que samba, dança e representa com toda a autoridade a ginga de um país mestiço e harmonioso como o nosso. Ah mulata, sua pele morena, seu cabelo macio e alisado na chapinha; bendito seja o Henê Maru e o Alisabel que resolveram o problema do seu pixaim. Não faltam mulatas exportação na sua história. O que diríamos da dançarina Mercedes Baptista, da cantora Elza Soares (que deu um drible de placa conquistando o coração do craque de futebol Garrincha), a Miss Guanabara e segunda colocada no Miss Brasil 1964, Vera Lúcia Couto, as cantoras Eliana Pittman e Clara Nunes, a Miss Brasil 1986 Deise Nunes, a diva das telas de Di Cavalcanti, Marina Montini, e a “sargentelli”, que posteriormente virou atriz global, Solange Couto. Desnecessário dizer que o carnaval é a data na qual ocorre uma opulência de mulatas dos mais variados tipos, formatos e cores. É a época do ano em que reinado delas é estabelecido. São elas rainhas do carnaval, madrinhas de bateria de escolas de samba e as passistas da avenida. Sendo assim, a última versão da mulata exportação foi criada nos anos 1980 no contexto do carnaval: a “mulata globeleza.” A sua figura ficou associada à modelo e dançarina Valéria Valença que, durante os anos 1990, aparecia nas vinhetas de uma rede de televisão com o corpo despido de qualquer peça de vestuário e coberto por pinturas. Bastava a vinheta da mulata globeleza aparecer na TV para sabermos que o carnaval com sua alegria e luxúria havia chegado. Mas como já disse, o aparecimento da mulata globeleza sinalizava a agonia da figura mulata exportação. Desde os anos 1970 , uma série de negros - pais e avôs dos atuais negr@s metid@s - começaram a divulgar a ideologia de que todos aqueles haviam passado das seis da tarde no seu nascimento (e não vale ser no horário de verão!) ou possuíam o pé na cozinha não deveriam mais se pensarem como pret@s, pard@s, moren@s, cablocl@s, cafuz@s e mulat@s. Diziam eles que para o que não há remédio remediado está: tod@s deveriam se auto-definir como NEGR@S. Foi a partir daquele momento que a mulata começou a ser perseguida como categoria social: perdeu o respeito dos ditos mais educados, que insistiam em chamá-la de negra. Oswaldo Sargentelli morreu em 2002 de enfarto e desgosto. Dizem as más línguas que a desilusão do mulatólogo aumentara mais ainda ao saber que as cotas para negros, estabelecidas inicialmente numa universidade estadual do Rio de Janeiro, uma cidade mestiça/mulata, não aceitaria mulatas, mas apenas negras. Em 2004 Valéria Valença, já aposentada da TV, se tornaria evangélica. A Solange Couto, por sua vez, não parava de engordar na época em que escrevi esse texto e já voltou a emagrecer agora que o publico. Nossa última esperança de reviver a mulata exportação era através de uma mulatinha promissora: Camila Pitanga. Mero engano. Sem pestanejar e em questão de poucos anos ela se revelou uma negra metida global. A mulata exportação desapareceu de vez e mesmo a mulata comum com samba no pé também está fadada à extinção. O carnaval, época em que elas são mais toleradas e têm lugar privilegiado na folia de Momo, já não é mais o mesmo. Ela ainda é a rainha da festa, mas sua nobreza, constituída de madrinhas de escola de samba e passistas, vem se transformando rapidamente e as mulatas tem perdido o seu posto para branquelas globais esqueléticas bronzeadas artificialmente e mulheres fruta fartas de aBUNDÂncia e pobres de ginga. Mas aposto que nunca seremos tão bons em exportar melancias e peras como fomos com mulatas. É vero! Que Deus abençoe a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, cujo porto séculos atrás recebeu pretos escravos africanos e portugueses brancos colonizadores para séculos depois enviar, via Galeão, às mais diversas partes do mundo, o produto mais 100% nacional de todos: a mulata exportação.

Leia também os outros ensaios do Dr. Brandão: "Negr@s Metid@s" (AQUI) e "O Mulato Pernóstico" (AQUI)