Um amor antigo é sempre testado no decorrer de nossa trajetória. Há momentos - especialmente naqueles de crise - em que você se pergunta qual foi o motivo que o levou a se apaixonar por tal coisa ou pessoa. Minha relação com o
hip hop é uma relação de amor antigo: há momentos que duvido que ainda estou apaixonado ou tenho sentimentos por essa expressão artística, cultural e política. Daí é preciso voltar ao final dos anos 1980 e início dos 1990 para me lembrar de como um adolescente negro vivendo numa cidade caipira do interior de
São Paulo se derreteu de amor ao começar a frequentar bailes
black ali ouvir pela primeira coisas como
Public Enemy,
Bismarck,
Run DMC,
Naughty By Nature,
N.W.A.,
MC Jack,
Thaíde e DJ Hum,
Racionais e outros mais. Você se sente aliviado ao (re)ouvir parte desses grupos e lembrar que foi ali que tudo começou. Entretanto, tem momentos que é bem difícil de gostar da parada. Um desses momentos tem rolado agora, com tantas porcarias (tipo
Drake,
Nick Minaj,
Lil Wayne entre outros) fazendo sucesso principalmente no mercado norte-americano. Não diria que o
hip hop, que é muito maior do que o
rap, está em crise. O mal estar do
rap corresponde a um momento de transição que a música
pop como um todo vive nos últimos quinze anos. Ninguém sabe muito bem para onde a parada vai devido as mudanças tecnológicas e o poder cada vez menor (graças a
Deus, se ele existir!) das grandes gravadoras.
Uma surpresa boa no meio desse lamaçal é o lançamento de
Black Radio, álbum que é uma reunião de artistas organizada pelo músico de
jazz Robert Glasper batizada por ele de
Robert Glasper Experiment e contando com a participação de
Erykah Badu,
Musiq Soulchild,
Lupe Fiasco,
Yasiin Bey (
Mos Def),
Chrisette Michele,
Bilal,
Stokely,
King,
Shafiq Husayn,
Ledisi,
Meshell Ndegeocello e
Lalah Hathaway. Glasper, de 33 anos, colecionou todas essas amizades no decorrer dos últimos anos. Nascido e criado em
Houston seu
background é invejável. Sua família frequentava igrejas em que
gospel e
R&B eram os gêneros musicais que davam ritmo aos cultos. Na adolescência Glasper estudou numa escola de ensino médio com ênfase em artes e famosa por produzir jovens músicos de
jazz e
R&B, alguns nomes ligados a escola são
Jason Moran (jovem pianista com contrato com a
Blue Note, mesma gravadora de Glasper) e nada menos do que a senhora
Carter:
Beyoncé Knowles.
Fiquei sabendo da existência de
Black Radio de forma inusitada. Semanas atrás, ao entrar em um dos prédios de minha universidade, vi um mural onde estava pregada a reportagem
The Corner of Jazz and Hip Hop (leia
AQUI) publicada no jornal
New York Times de 24 de fevereiro último. O texto fala do lançamento do novo álbum de Glasper e de sua carreira. A propósito, a reportagem do
NYT estava pregada no mural de minha universidade porque o músico é ex aluno da
The New School for Jazz and Contemporary Music (escola de música da universidade onde faço meu doutoramento em sociologia). Mas daí vem a pergunta: o que o álbum possue de tão especial?
A questão é digna de nota uma vez que essa fusão (
crossover) entre
hip hop e
jazz não é algo novo. Os anos 1990 registraram uma série de discos que se embrenaram nesse caminho como o projeto
JazzMatazz do falecido
rapper Guru com seu parceiro
DJ Premier além dos primeiros discos do
Gangstar (o grupo dos dois), o produtor
Eazy Mo Bee que usou
riffs de
Miles Davis para dar uma roupagem contemporânea a música do astro do
jazz, os dois álbuns do grupo
Digable Planets, os discos do catado de grupo
US3, os dois discos do projeto do músico de
jazz Brandford Marsallis intitulado
Buckshot LeFonque além das produções do falecido
J Dilla para grupos que emergiram nos anos 1990 como
De La Soul,
A Tribe Called Quest e
Common. Pois bem, o que faz a diferença no disco de Glasper é a facilidade com que o músico faz a ponte entre
jazz acústico,
R&B,
neo-soul e
hip hop. Há algum tempo o músico se tornou amigo de várias figuras importantes da cena musical negra contemporânea devido aos comentários boca a boca das apresentações de seu quarteto de
jazz. Apesar de fazer
jazz, as apresentações do grupo de Glasper começaram a reunir um audiência majoritariamente jovem e afro-americana, algo inusitado para músicos de
jazz geralmente mais apreciados por um público branco e estrangeiro. O motivo para o interesse da molecada pelo som de Glasper era justamente a pegada diferente que o músico dava as suas apresentações trazendo um "Q" de contemporaneidade, balanço e peso ao
jazz. Isso se deve em muito aos contatos de Glasper com
J Dilla, DJ e produtor oriundo de
Detroit falecido em 2006, que foi um dos primeiros artistas de
hip hop a fundir
jazz em suas produções no início dos anos 1990. Sem mais, recomendo o álbum
Black Radio para o/as leitore/as do
NewYorKibe. Injeção de dinamismo e contemporaneidade ao
hip hop e
jazz! Ouça abaixo a faixa "Afro Blue" que conta com a participação de Erykah Badu.
Muita Paz Muito Amor!