sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sangue no Zóio!


Sangue no Zóio!
Para meu amigo João Batista Félix


José Birula era tido como um militante radical, essencialista e que defendia  unilateralmente a autonomia da população negra. Crescera crente e corinthiano, virara punk nos anos 1970 e nessa mesma época adentrou as fileiras do movimento negro. Todos aqueles que conheciam Birulão, como era popularmente chamado, tremiam só de pensar em dividir uma mesa de debate com o figura. O homem era implacável, não deixava pedra sobre pedra e humilhava brancos e pretos pouco informados sobre ele e contrários as suas posições político/ideológicas. Enfim, Birulão se enquadrava naquilo que era conhecido no meio da negrada como o “negrão sangue no zóio”. Negrões “sangue no zóio” são aqueles pretos que exalam raiva e cujo os olhos ficam inchados e vermelhos antes dos mesmos partirem para o ataque. Assustador!

Segundo consta, há vários negrões “sangue no zóio” na história da humanidade: Marcus Garvey, Malcolm X, Otelo, Nego Dito, Serginho Chulapa, Muhammad Ali (foto), Exu, Frederick Douglas, Pato N’água, Tobias do Camisa, Branca de Neve, Rei Salomão, Notorious BIG, a Família Brown (James Brown, Mano Brown, Sheila Brown, Boby Brown e outros brownies), Xangô, Tupac Shakur, Saci Pererê, Neguinho Pastoreio, Hailé Selassie, Mike Tyson, Birulão dentre outros. Há também a categoria das “nega sangue no zóio”: Marli, Chica da Silva, Nina Simone, Maria Padilha, Angela Davis, Dandara, Rainha de Sabá e outras.

Birulão era o cara. Quando o seu Fusca vermelho com uma porta e capô preto sem pintura – que ele nunca tratava de arrumar – eram avistados nas quebradas do Bairro do Limão até o tom da rodas de conversa mudavam. As mães, quando queriam fazer as crianças se comportarem, apenas diziam algo como “Ah moleque, vou chamar o Birulão pra ter uma conversinha com você, viu?” e o problema se resolvia. Apesar de sua fama de severo, radical, inflexível, politicamente engajado e general, pouco se sabia da vida pessoal de Birulão. Pouquíssimas pessoas já haviam adentrado o interior da sua casa e os que fizeram contribuíam ainda mais para o folclore relacionado aquela figura do bairro do Limão. Alguns diziam que todas as paredes da casa eram cobertas com estantes cheias de livros e que não havia nem um móvel se quer, outros afirmavam que a casa era uma bagunça e cheia de garrafas de cachaça vazias espalhadas pelo chão, alguns afirmavam que havia despachos em todos os cantos da imóvel e outros ainda juravam que havia fotos nas paredes da casa que mostravam Birulão com uns trajes meio estranhos e segurando cobras nas mãos.

Mas o mistério sobre nosso pretão “sangue no zóio” era acompanhado de outros aspectos que deixavam todos ainda mais confusos. Birulão media quase dois metros de altura, possuía um corpo musculoso e os braços tatuados com símbolos enigmáticos. Geralmente usava um black perfeitamente arrumado com laquê, cavanhaque milimetricamente feito e um brinco de argola dourado na orelha esquerda. No dias de sol o homenzarão saía de casa todo estiloso usando Ray Ban aviador na cara, camiseta regata, calça boca de sino e bota preta engraxada a ponto de refletir imagens na sua superfície. Seus dentes chegavam até brilhar quando o pretão falava emitindo sua voz gutural com o típico sotaque paulistano e os irritantes “a nóis vai”, “a nóis vem”, “meu” e “ora” enquanto movia um palito de dentes no canto da boca. Todo domingo Birulão vestia uma camiseta de lã preta com o brasão do Corinthians e ia assistir os jogos do Timão no Pacaembu.

Havia estórias e mais estórias sobre Birulão... Uma de que ele havia batido em três policiais armados da ROTA, outra de que um sujeito tentou assaltá-lo na quebrada e que ele tomou a faca do infeliz assaltante cortou um dedo do rapaz e o comeu o pedaço de carne a sangue frio e outra que Birulão tinha sido boxeador e ganhado um campeonato estadual na categoria peso pena antes de passar a integrar as fileiras do movimento negro. Havia também comentários de que Birulão freqüentava um pé sujo na quebrada do Limão e ficava horas e horas tomando pinga e comendo pimenta malagueta como petisco: o pretão comia a pimenta e tomava a pinga num copo grande de suco pra dar uma refrescada. Mas a mais extraordinária história de todas era a de que Birulão era mestre de capoeira que jogava uma modalidade chamada rangonal – mistura de regional com angola – e que havia viajado para um país africano onde teria participado de um programa intensivo de guerrilha tendo como parceiros de curso militantes do Black Panthers Party, O Fruto do Islã (a guarda dos Muçulmanos Pretos), um pessoal da Torcida Jovem do Santos, outro da Gaviões da Fiel e a FRELIMO (só a elite dos “negrão sangue no zóio”) no qual iniciou os patrícios gringos nesse tipo de capoeira. Rambo, perto de Birulão, era um peidinho, diziam.

Outro lugar que Birulão podia ser freqüentemente visto era nos ensaios da Vai-Vai no Bexiga. O negrão tocava surdo e todo ensaio era necessário dar um instrumento novo pro figura já que Burilão destruía a parada devido a força com que batia no mesmo. Alguns diziam que Birulão batia no surdo imaginando que o instrumento fosse um branco. Mestre Tadeu, folgado como ele só, se virava para o patrício de quase dois metros e dizia enjuriado: “Porra negrão, você é foda hein?! Só dá prejuízo, caralho!”. O sonho das negas era ver Birulão na comissão de frente da escola mostrando o seu corpinho. Mas Birulão se negava, dizia que lugar de negrão que é negrão mesmo era com os “curvas de rio” da bateria (e haja curva de rio!). Pois é, Birulão, Birulão e Birulão... O terror da brancaiada e o fetiche da mulherada. Pois bem, aí que começava o problema.

Havia muita especulação sobre os motivos que haviam feito José Birula se tornar Birulão, ou seja, passar de um neguinho qualquer a um ativista radical. Por mais que ele sempre esclarecesse a todos que sua energia e luta não era dirigida contra os brancos, mas sim contra o racismo, e que “radical” não fazia referência a alguém extremista ou essencialista, mas a um indivíduo que focava as causas primárias dos problemas nas discussões uma vez que “radical” vinha de raiz, a maioria das pessoas o associavam a um imaginário de ódio aos brancos. A história mais disseminada para explicar esse suposto posicionamento era de que Zé Birula, ainda no início de sua juventude, havia sofrido uma desilusão amorosa com uma loira escandinava que o abandonara quando ele se encontrava perdidamente apaixonado. A partir daquele momento Birula teria prometido lutar contra todos os brancos, já que eles seriam a causa maior de seu sofrimento. Nascia então Birulão, o negrão sangue no zóio... Contudo, essa história era rebatida pela maneira cordial que o ativista radical tratava branc@s em geral, principalmente aquele/as que ele denominava branc@s aliad@s. Em suas falas ele explicava que o racismo deveria ser entendido como relação de poder disseminada na sociedade e  reproduzida tanto por negros como brancos, mas que favorecia brancos em detrimento de negros. Sendo assim, seria incorreto falar em negros racistas, já que negros não teriam o poder. Eles poderiam ser preconceituosos, mas não racistas. Mas como pouca gente entendia o palavreado cheio de “ismos” de Birulão – anarquismo, afro-marxismo, culturalismo, trotskismo, lenilismo, individualismo, corporativismo, estruturalismo, etcéteraismos – o termo “racismo às avessas” era logo associado ao pretão e Birulão era tido como um grande NEGRÃO RACISTÃO!

Mais controvérsia surgia pelo fato de que Birulão nunca era visto em companhia feminina algo que, ao mesmo tempo, fazia com que outros fuxicos surgissem como o de que Birulão era um gay enrustido que, por falta de coragem de assumir sua homossexualidade, canalizava seu ódio contra os brancos e exacerbava sua virilidade. O resultado era uma confusão só já que Birulão era temido e ao mesmo tempo desejado por branc@s e pret@s, heteros e homos. Birulão, o negrão sangue no zóio e símbolo sexual!

Toda a controvérsia sobre Birulão aumentava de forma vertiginosa. Havia apostas disseminadas entre todo o movimento negro e os brancos sobre se o negrão sangue no zóio seria gay, namoraria ou seria casado com um/a branc@. Mas algumas pessoas estavam decididas a desvendar os segredos do negrão e armaram uma espécie de cilada para o figura. O ativista foi convidado para falar numa mesa sobre a importância das mulheres negras e a questão da sexualidade no período da escravidão. Todos os participantes da mesa foram aconselhados a levarem suas namorad@s, esposas ou companheir@s já que a mesa se dava justamente num 12 de junho, dia dos namorados, e na seqüência haveria uma baile em comemoração a data.  O tema da mesa era sugestivo: “Por Todas as Formas de Amor Livre de Preconceito”. Birulão fora convidado a falar sobre a possibilidade de amor entre negros no período da escravidão e aceitou a proposta sem pestanejar ou desconfiar da verdadeira intenção dos organizadores.

O dia chegou. Pontualmente Birulão estacionou seu Fusca vermelho, com capo e porta pretos, em frente a Associação Mãe Preta localizada numa quebrada da Casa Verde. Vinha sozinho no seu carro o que despertou a atenção das pessoas que o receberam na entrada do prédio fitando seu rosto protegido pelos óculos escuros Ray Ban aviador. Ninguém disse absolutamente nada sobre a ausência de sua companhia, mas todos os olhares eram de cumplicidade e dúvida. Birulão parecia tranqüilo. Os outros participantes da mesa já haviam chegado sendo uma ativista negra lésbica, um branco gay e uma branca feminista. O negrão sangue no zóio cumprimentou todos de forma amigável e tomou seu lugar na mesa. A platéia era diversa: homens, mulheres e crianças das mais diversas raças e etnias. Negros, brancos, asiáticos, judeus ortodoxos, muçulmanos, evangélicos, candomblecistas, umbandistas, católicos entre outros, um zoológico só. Havia um certo frenesi na audiência, mas Birulão não notara nada de diferente na mesma em relação as outras que já enfrentara. Pelo contrário, aquela, sabia-se lá por qual motivo, parecia-lhe extremamente simpática. O branco gay foi o primeiro a falar e expôs a problemática de ser homossexual e ter relacionamentos como pessoas do mesmo sexo numa sociedade homofóbica expondo sua experiência de vida. Em seguida falou a branca feminista que trouxe números que evidenciavam a desigualdade de gênero entre homens e mulheres e como só se poderia haver relacionamentos verdadeiros quando as relações de gênero fossem mais igualitárias. Na seqüência falou a negra lésbica falando da especificidade das mulheres negras dentro de uma sociedade racista, machista e patriarcal. Ainda havia no caso dela a dificuldade de ser homossexual e enfrentar a homofobia da sociedade conjunta a opressão de gênero e raça. Birulão foi o último e falou de amor entre negr@s usando um texto de bell hooks. De acordo com ele, o amor tinha sido algo negado aos negros por conta da escravidão onde vínculos consangüíneos entre pai, mãe, filhos, marido e mulher eram quase impossíveis de serem estabelecidos. Mesmo com o fim da escravidão, o amor era visto como um privilégio em meio a necessidade de subsistência e essa dificuldade de amar continuava a existir devido ao processo de desumanização que negr@s haviam sofrido por conta do racismo. A possibilidade de amar plenamente para negros estava vinculado ao combate as formas de opressão vigentes não só no racismo, mas também na homofobia e no patriarcalismo. Ao final da fala dos palestrantes a platéia foi convidada a fazer perguntas e o debate durou por mais uma hora. Todos acompanhavam as perguntas e respostas com atenção. Por volta da 22 horas a mesa foi dada como encerrada e todos foram convidados a tomar parte do baile conduzido por um equipe de black music.

As simplórias cadeiras de metal meticulosamente dispostas na sala foram rapidamente retiradas deixando o espaço vazio para que o baile acontecesse. O disc-jóquei, após alguns testes no microfone e na aparelhagem, soltou a primeira melodia que suavizou ainda mais o ambiente descontraído. O rapaz gay segurava a mão de seu companheiro, a militante feminista parou ao lado de um homem que parecia ser seu marido e a ativista negra lésbica abraçava sorridente a sua esposa, uma mulher negra na casa dos 30 anos. Birulão havia sumido e novamente o olhar de dúvida e curiosidade invadiu os olhos dos presentes. Da mesma forma que desaparecera o negrão sangue no zóio reaparecera dessa vez segurando um copo americano cheio de cachaça e com um sorriso que exibia seus dentes imaculadamente brancos cujo brilho ofuscava a visão de seu rosto retintamente preto. O reflexo de seus dentes também fez com que somente após alguns minutos os presentes notassem que havia outro corpo atrás de Birulão. Um braço do corpo entrelaçava a cintura do negrão, mas era apenas o que se conseguia ver. A notícia começou a correr o salão e muitas senhoras mais velhas, após ouvirem a fofoca do que ocorria, sussurrada de ouvido em ouvido em voz baixa, faziam o sinal da cruz e saiam do salão de maneira discreta.

Uma hora se passou e Birulão continuava no canto do salão, bebericando sua cachaça e com o braço do corpo desconhecido circundando sua cintura. O salão começava a esvaziar. Foi nesse momento que um dos organizadores criou coragem e resolveu se dirigir até onde Birulão estava parado sorrindo e bebendo. Os passos do senhor branco de meia idade eram hesitantes e por mais de uma vez ele pensou em desistir de sua intenção, mudar de direção e se dirigir a outro lugar do salão. Porém, após não mais do que dez passos, ele se encontrava praticamente de frente com Birulão e no momento que ensaiava as primeiras palavras para a figura de quase dois metros de altura foi paralisado pela visão que teve. Um corpo idêntico ao de Birulão surgiu a sua frente como se o negrão houvesse se duplicado. O homem ficou aterrorizado e sua pele, levemente rósea, avermelhou-se. A boca meio aberta deixava explícito seu espanto e terror e, depois de alguns segundos olhando para as duas imagens a sua frente, o homem notou algo de diferente: um salto alto sustentava os pés nus de unhas pintadas de vermelho, a calça de lycra preta marcando as pernas volumosas, uma bata vermelha de seda combinando com os enormes, brincos, colares e pulseiras pretas que adornavam o corpo que tinha quase a mesma altura de Birulão. Meio sem jeito e procurando uma palavra que amenizasse a confusão que seus pensamentos haviam mergulhado o homem de meia idade disse de forma quase involuntária e com os olhos arregalados... “Porra Birulão, você é radical memo hein negrão?... Até sua muié é preta, caralho!”

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Di Melo, O Imorrível!



Cena 1: Início do mês de abril, dias antes de visitar o Brasil numa viagem rápida, estava eu a caminhar com meu amigo Ernesto Carvalho, fotógrafo e estudante de doutorado em antropologia na New York University (NYU), pela rua 14 quando ele respondeu a uma de minhas indagações - e sempre faço "indagações" a Ernesto - cantando uma letra de música que eu descreveria de, no mínimo, peculiar. Abri um sorrisso e perguntei que porra era aquela de música que ele estava cantando ao que meu amigo respondeu, "Di Melo, cara! Você nunca ouviu Di Melo?" Diante de minha negativa veio toda uma história sobre o autor de Kilarió...

Cena 2: Início do mês de maio. Encontro com Ernesto depois de voltar para Nova Iorque e pergunto: "E aí mano, cadê o DVD do documentário do Di Melo?", "Esqueci, mas trago amanhã..."

Cena 3: Mês de junho. Novo encontro. "E aí Ernesto, traz o DVD pra mim amanhã?", "Pô amanhã sem alta eu trago. Desculpa aí! Hoje quando chegar em casa vou colocar o esquema dentro da mochila e não tem como esquecer, ok?"

Cena 4: Mês de julho. Mais um encontro... "E o DVD, Ernesto?...", "Puta merda, cara!"...


Assim é meu truta Ernesto, só não esquece a cabeça por que está grudada. Mas enfim, naquele primeiro papo sobre Di Melo em abril, meu brother explicava que o cantor é uma celebridade da Brazilian/soul/MPB (música preta brasileira). Nos anos 1970 esse pernambucano radicado em São Paulo conseguiu lançar um disco após tocar por um tempo na noite paulistana. O LP sairia pela EMI-Odeon tendo a participação de celebridades como Hermeto Pascoal e Heraldo do Monte e algumas canções como Kilariô, A Vida em Seus Métodos Diz Calma e Se o mundo Acabasse em Mel tiveram uma boa repercussão. Contudo, após algum tempo tanto o LP como o cantor cairam na obscuridade.


A retomada se deu nos anos 1990 a partir de DJs ingleses que começaram a tocar suas músicas tendo uma delas, A Vida em Seus Métodos Diz Calma, sido incluída na coletânea Blue Brazil 2 da gravadora de jazz Blue Note e o cantor chegou a fazer uma participação no vídeoclipe da canção Don't Stop the Party do grupo Black Eyed Peas. Seu primeiro e único álbum foi relançado, em CD, em 2002, dentro da coleção Odeon 100 anos, coordenada por Charles Gavin. Além do disco de 1975, estima-se hoje que o cantor/compositor possua mais de 400 músicas inéditas criadas ao longo dos últimos 35 anos. O DVD que fiquei a pedir insesamente para meu amigo esquecido é o do documentário Di Melo: O Imorrível (2011), dirigido por Alan Oliveira e Rubens Pássaro (amigos de Ernesto), que retrata a vida do cantor a partir de depoimentos de amigos, músicos e entrevistas com o próprio artista. Chega de conversa... Baixe o disco de Di Melo AQUI e assista o trailer do filme que eu ainda não assisti logo abaixo. Mas Ernesto me prometeu que trará o DVD amanhã... *rs*
Muita Paz, Muito Amor!

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Meus 10 Livros “Mais Mais” de 2011: Post Número 10


10- Black Sexual Politics: African Americans, Gender and the New Racism (2005). Patricia Collins. Routledge. New York. US$ 33.57 (em média). Minha última leitura preferida de 2011 foi o livro de Patricia Collins, uma famosa socióloga negra feminista afro-americana. No Brasil Collins é mais conhecida por outro livro intitulado Black Feminist Thought (1999) e no qual ela traça um quadro histórico e teórico do pensamento negro feminista nos EUA. Já em Black Sexual Politics, Collins foca sua atenção a questões relacionadas a gênero, sexualidade e a representação dos negros na mídia e na cultura popular norte-americanas. De acordo com Coolins, a sexualidade dos negros é em geral retratada como “wild” (selvagem) e “out of control” (fora de controle). Ao dedicar atenção especial aos marcadores de gênero (na verdade, uma abordagem inter-seccionada das categorias raça, classe, gênero e sexualidade), a autora se capacita a afirmar que desde da época de Sarah "Saartjie" Baartman (1790-1815), a mais famosa das Vênus Hotentotes, e Josephine Baker (1906-1975), o corpo das mulheres negras tem sido visto como elemento de diferenciação racial e objeto de desejo sexual. Atualmente, cantoras de R&B como Jennifer Lopez, ou as integrantes da antigo grupo de Beyoncé Knowles, o Destiny’s Child, além de rappers femininas como Missy Eliot e outras celebridades da cultura popular negra tem explorado mais e mais em suas canções ou no conteúdo de seus mais diversos produtos culturais tópicos relacionados ao formato e tamanho de seus próprios corpos e preferências sexuais. Canções como Bootylicious (2001), do Destiny’s Child, Get Your Freak On, de Missy Elliot (2001), e o fato de Jennifer Lopez ter segurado suas nádegas em um milhão de dólares seriam claros exemplos de como a sexualidade é explorada na indústria musical e no aparato midiático estadunidense. Collins afirma que há um “novo racismo” nos Estados Unidos contemporâneo que é, em grande parte, fruto de três diferentes mas inter-relacionadas mudanças na estrutura da sociedade norte-americana. Primeiro, há o estabelecimento de um novo capitalismo global que separa a sociedade entre dois grupos de indivíduos: 1) aqueles vinculados a corporações internacionais e/ou elites econômicas e políticas com alto poder de mobilidade e acesso a informação e 2) uma classe de indivíduos pobres, em sua maioria negros, com empregos precários, pouco ou nenhum poder de mobilidade e ausente de informação. Ao mesmo tempo, há uma mudança na estrutura política da sociedade norte-americana que destitui os cidadão de vários direitos, mesmo quando ele aparentam estar incluídos.  Por fim, no contexto do novo racismo, o aparato midiático cresce em importância e tem um papel chave na reprodução e disseminação de idéias que legitimam e justificam o novo racismo que é explicado através de falsos argumentos culturalistas.  Nas palavras da autora, “os filmes, revistas, vídeos de música, shows de televisão do entretenimento global, a publicidade e as novas indústrias que produzem super estrelas como Jennifer Lopez ajudam a forjar o consenso que faz o novo racismo parecer natural, normal e inevitável” (Collins, 2005: 34). Nesse sentido (e de forma paradoxal), os EUA são um lugar onde sexualidade, em geral, e sexualidade negra, em particular, tem alta visibilidade mas, ao mesmo tempo, são uma sociedade repressiva onde se evita o engajamento em discussões sobre sexualidade em perspectivas políticas e educacionais. O resultado imediato desse processo é uma ausência de debate sobre sexualidade fazendo com a que a mesma seja normativamente entendida (sem questionamentos) como heterosexismo e levando a que outras práticas e orientações sexuais sejam vistas como tabu e consideradas desviantes. O silêncio do “política afro-americana em questões de gênero e sexualidade” cria um cenário onde descrições estereotipadas da sexualidade negra são normalizadas/naturalizadas e entendidas como desviantes. Um dos grandes méritos da análise de Collins nesse livro é mostrar como as questões de gênero afetam tanto homens como mulheres (gênero não é uma “questão apenas de mulheres”, como muitos acreditam), sejam ele/as hetero, homo ou transexuais. Para aqueles que se deliciam com a cultura popular negra vista em ritmos musicais (hip hop, R&B, funk, soul, jazz, etc.), filmes (blaxploitation, hood movies e comédias românticas negras), stand ups de comediantes e séries de TV com personagens negro/as, o livro é uma oportunidade única de ver essas manifestações esmiuçadas numa análise sociológica complexa e bem feita. Em suma, depois de ler livro você vai entender porque algumas mulheres afro-americanas se referem a si mesmas ou a colegas femininas como bitches , porque alguns afro-americanos se auto-definem ou se referem a amigos próximos como dogs, porque negros gays são vistos como negando a identidade negra ao assumirem sua homossexualidade dentre outras questões polêmicas.
Muita Paz, Muito Amor!

terça-feira, 24 de julho de 2012

Racionais MC's: "Politics is Cool!"


Assistindo ao mais novo vídeo do grupo de rap Racionais MC's lembrei de um trecho do livro Hip Hop America (1999), escrito pelo jornalista afro-americano Nelson George, na qual o autor descreve a novidade trazida por um dos grupos de rap mais importantes da história do hip hop mundial: Public Enemy. De acordo com George, a trumpe liderada por Chuck D foi, na virada da década de 1980 para 1990, responsável por fazer com o que o engajamente político se tornasse algo divertido e hype. Em suma, Public Enemy transformou a política em algo cool, um termo que no limite não pode ser traduzido, pois é entendido como "legal", mas faz referência a algo maior próximo de "descolado". Ao assistir o vídeo "Mil Faces de um Homem Leal (Marighela)", faixa do próximo álbum dos Racionais, senti isso... Ou seja, como os Racionais conseguiram colocar a história de guerrilheiro Carlos Marighela numa perspectiva "cool" e o aproximar da imagética de líderes negros da diáspora africana. Aliás, essa rapaziada de São Paulo volta a suas primeiras influências uma vez que a estética do vídeo está muito próximo da estética vista nos clipes do grupo de Long Island durante o seu período de apogeu. A letra de Brown é boa, mas o letrista está longe de sua melhor forma quando a mesma é comparada com perólas do tipo "Capítulo 4 Versículo 3" ou "Tô Ouvindo Alguém me Chamar". Mas Brown é Brown: ele é o cara e politics is cool!
Muita Paz, Muito Amor! 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Meus 10 Livros “Mais Mais” de 2011: Post Número 9


9- Malagueta, Perus e Bacanaço (2004). João Antonio. Cosac Naify. São Paulo. R$ 49 (em média). Durante muitos anos tentei ler João Antonio (à direita na foto, de barba), mas sei lá porque motivo sempre travava nas primeiras páginas e acabava deixando a leitura de lado. Ano passado, no dia de meu aniversário, consegui comprar a edição mais recente de Malagueta, Perus e Bacanaço lançada em 2004 pela Cosac Naify. Os livros são extremamente bonitos e com enxertos de textos inéditos do autor, comentários críticos de especialistas além de uma introdução de nada menos do que Antonio Candido. Não quero dizer que tudo isso foi necessário para me convencer da importância desse autor paulistano que se colocou como uma continuação da literatura feita por Lima Barreto, mas retratando o cotidiano dos bairros populares, classe média baixa ou trabalhadora e da malandragem paulistana dos anos 1960 e 1970. João Antonio é um autor que há muito tempo conquistou seu lugar na literatura brasileira e serviu de inspiração para uma grande leva de autores, inclusive aqueles vinculados ao que hoje se convencionou chamar de “literatura marginal”. Entretanto, diferente desses Antonio possui uma espécie de prosa que o aproxima ao mesmo tempo da linguagem falada como da poesia: sua maneira de escrever é ritmada, próxima de um samba caipira como aquele cantado por um sambista contemporâneo seu, Gilberto Filme (se não sabe quem é, googa aí e baixa os discos!). A poesia que nasce do estilo e das histórias de João Antonio é tão forte que Candido afirma que Malagueta... é uma espécie de clássico de um “regionalismo urbano”, algo próximo do que Os Sertões, de Guimarães Rosa, representou para a escola regionalista da literatura brasileira. As personagens do livro de estréia de João Antonio são figuras sofridas da selva de pedra chamada São Paulo que nos anos 1960 já mostrava traços do crescimento desordenado, da desigualdade social, da violência policial e de vários outros problemas sociais que só pioraram com o passar das décadas. Entretanto, lendo os contos do livro é possível captar uma nostalgia de lugares que guardaram os nomes – Lapa, Barra Funda, Pinheiros, Centro e outros –, mas que mudaram de forma radical. Há no livro um retrato apurado de prostitutas, pequenos funcionários públicos com seu trabalho entediante e da malandragem que resolvia suas pendências na base dos socos e navalhas, jogava bilhar e contava histórias de “celebridades” do mundo da rua numa época que a droga mais conhecida era maconha. Morrer de “tiro” ou ser baleado era algo somente para poucos bandidos mais célebres. João Antonio fala de uma época em que a miséria urbana era a regra, mas ao mesmo tempo era possível fazer dela uma espécie de poesia sofrida e melancólica que alentava a vida das pessoas, algo perfeitamente captável no sambas do mestre Cartola no contexto do Rio de Janeiro. Décadas depois, a escalada da violência tiraria essa possibilidade, algo que poderia facilmente buscar uma analogia entre a troca das navalhas pelos “três oitão” para resolver as “tretas” dos malandros. Na violência não existe poesia, só sangue e dor! Leia João Antonio...
Muita Paz e Muito Amor!

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Meus 10 Livros “Mais Mais” de 2011: Post Número 8


8- Bonequinha de Luxo: Breakfast at Tiffany’s (2006). Truman Capote. Companhia das Letras. São Paulo. R$ 43 (em média). Sou um grande fã de Truman Capote. Nos tempos de graduação li Música Para Camaleões (1980), tendo o estilo desse livro sido denominado pelo autor de "romance de não-ficção", e, desde então, virei um desse sofisticado escritor norte-americano assumidamente gay nos anos 1950/1960, amigo íntimo de mulheres da alta roda nova-iorquina e detentor de uma literatura afiada. Ok, todo mundo sabe que o clássico de Capote é A Sangue Frio (1966) e, seguindo o estilo desse livro, Música... pode ser entendido como uma espécie de continuidade. Capote era extremamente vaidoso e pouco ortodoxo na forma de conseguir informações para as suas histórias (assista o filme Capote e saberá do que estou falando). Bonequinha de Luxo, por incrível que pareça, é um livro cuja estilo é bem diferente e um pouco distante do que seria consagrado em A Sangue Frio.  Quando escreveu Bonequinha... Capote já era relativamente conhecido, mas buscava aperfeiçoar seu estilo buscando um tipo de escrita menos prolixa e mais direta. A faceta biográfica, que seria consagrada em Música..., já é explorada em Bonequinha... mas não de forma totalmente declarada. Quem afirma isso é o crítico Sam Wasson no livro Quinta Avenida, 5 da Manhã: Audrey Hepburn, Bonequinha de Luxo e o Surgimento da Mulher Moderna (2011) – uma espécie de “biografia” da obra (filme, livro, discos), gênero que vem se consagrando há tempos nos EUA – que explora os bastidores da produção do filme Bonequinha de Luxo (1961), filme que consagrou a carreira da atriz Audrey Hepburn. O livro de Capote, por sua vez, é um coleção de três contos ("Uma Casa de Flores", "Um Violão de Diamante" e "Memória de Natal") e uma novela que leva o nome de "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany’s" no original em inglês) tendo sido adaptada para o cinema. O papel central da  novela  é composto por uma prostituta de luxo que foi incorporada por Hepburn no filme e, de acordo com Wasson, foi inspirado na mãe do escritor. Capote teve uma infância e adolescência solitária, já que a mãe estava sempre envolvida em algum relacionamento o que a fazia colocar as necessidades e atenção do filho em segundo plano. Wasson afirma que a progenitora de Capote era uma mulher originária do sul dos EUA que sonhava com o glamour de Nova Iorque vista em filmes clássicos de Hollywood. Por conta disso e de relacionamentos fracassados, desde cedo o escritor sofreu e, com o passar do tempo, se acostumou a não ser o centro das atenções da mãe que deixava o filho de lado para frequentar festas e dar atenção a seus amantes. O que impressiona é como Edward Blake, diretor do filme Bonequinha de Luxo, conseguiu transformar uma novela cujo personagens são uma prostituta e um homossexual aspirante a escritor sustentado por uma amante rica num filme que apresentou uma representação de mulher moderna a sociedade norte-americana dos anos 1950. Tudo isso é explorado por Sam Wasson em seu recente livro. Mas fica a dica: para entender bem o livro do crítico é necessário ler o livro de Capote e assistir o filme de Blake. Li Quinta Avenida, 5 da Manhã em janeiro, mas ele só vai ser resenhado por aqui ano que vem... *rs*
Muita Paz e Muito Amor! 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Vovó Betina


“Minha bisavó era uma índia bugre e foi caçada no laço pelo meu bisavô!”, disse a garota morena de olhos verdes e dentes bem delineados que denunciavam o uso por vários anos de aparelho ortodôntico. Júlio sorriu e tomou mais um gole de sua cerveja. Noite de sexta-feira e o típico esquema de matar a última aula da faculdade para ir para o bar situado nas redondezas da universidade rolava novamente. “Meu avô era mais preto que você, Julião. Parece que ele era filho de escravos no sul de Minas, tá ligado?”, dessa vez havia sido o rapaz ruivo com sardas no pescoço que seguia o caminho natural da conversa do grupo de jovens universitários ao colocar a cor da pele de Júlio como mote do bate papo regado a cervejas e porções de batata frita. “Vovó Betina era loira dos olhos azuis e veio da Alemanha tentar a vida no Brasil!” Toda a mesa, constituída por uns cinco jovens, olhou surpresa para Júlio. “Nossa, que legal, cara! E ela casou aqui?”, perguntou alguém. “Sim, casou com meu avô que também era alemão e já estava no Brasil há algum tempo antes dela.” “Mas eles são os seus avós por parte de mãe ou de pai?”, perguntou outra voz. “Mãe. Da parte de pai minha ascendência é italiana!”. Silêncio. Júlio tomou mais um gole da cerveja que esquentava em seu copo enquanto observava olhares de dúvida e incerteza. “Legal Julio! Mas... Bem... Então...” ameaçou alguém. “Bicho, não sabia que você era adotado”, finalmente lançou corajosamente um deles. “Adotado? Não, sou filho biológico. Por que você acha que eu seria adotado?”, respondeu Júlio com uma expressão de dúvida no rosto. A mesa estava pasma, mas o universitário não parecia se importar. “Estou querendo tirar minha dupla cidadania, mas tô na dúvida se peço a alemã ou italiana. O que vocês acham?” A conversa parecia tomar contornos surreais pelo olhar de todos os jovens presentes na mesa do boteco. O único que parecia à vontade era o rapaz dono da pele cor de chocolate amargo. “Mas e aí, alemã ou italiana?”, insistiu o jovem abrindo um sorriso de prazer. “Alemã!”, disse uma voz feminina vacilante. “Acho que você tem razão”, disse Júlio com um sorriso, “Sempre quis assumir minhas raízes alemãs!”. Silêncio sepulcral em minutos que pareceram horas... “Pois é... E o Corinthians, hein? Viu o jogo de anteontem?”, emendou o rapaz ruivo meio sem jeito enquanto fazia sinal para o garçom pedindo mais uma loira gelada. “Não fode, pô... Eu sou palmeirense, caralho!” Disse Júlio com cara feia e batendo o copo vazio na mesa.