Paçoca Amor
Para Mônica Ribeiro e Ribeiro
Paçoca,
doce tipicamente nacional. Ela não existe em outros lugares do mundo e,
por conta disso, se configura numa iguaria autóctone assim como a
cachaça, o samba, a feijoada e a mulata, apesar de essa última estar
fadada ao desaparecimento devido ao surgimento das negras metidas norte
americanizadas. Há uma história que circula por aí falando do amor de um
chocolate e uma paçoca. A paçoca, segundo consta, era indelével devido a
seus traços. Por onde passava levantava suspiros. Grande, linda,
deliciosa e de uma cor maravilhosa: um misto de açúcar mascavo com
caramelo. Seu nome: Paçocão. Dizem que o amendoim, ingrediente básico da
paçoca, é afrodisíaco. Talvez. Mas os segredos da paçoca estão em
outros lugares, ela não pode ser simplesmente comparada a uma espécie de
Caracu com ovo. Paçocão, que viria a ocupar um lugar único na vida de
Chocolate Boogie (alcunha do homem chocolate) possuía esse mistério que
só as verdadeiras paçocas conseguem ter. O charme, a beleza, a
consistência, o sabor, esperteza, e o jeito sedutor de uma paçoca 100%
nacional.
Determinada ocasião CB (pronuncia-se “Ci Bi”)
e Paçocão estabeleceram uma discussão a respeito da real identidade da
paçoca. A propósito, tratava-se de uma crise identitária de Paçocão que
havia viajado aos Estados Unidos para passar uma temporada nas terras
yankees aprendendo inglês, habilidade necessária no seu projeto de se tornar uma mercadoria globalizada. CB, que alguns
brothers gringos gostavam de zoar chamando de
Chocolate Bootie,
se encontrava por lá há tempos. Ele não passava de um chocolatizinho
interiorano metido a gringo que falava inglês errado e ganhava a vida na
exportação de chocolates
M&Ms para o Brasil e fazendo
trambicagens. O desentendimento dos dois começara a partir dos vários
pacotes de paçocas levadas por Paçocão como souvenir da terrinha
buscando aplacar um pouco das saudades de Boogie do solo tupiniquim. Uma
das grandes representantes dessa iguaria brasileira é a paçoça da marca
Amor, que Boogie chamava desde criança de paçoquinha uma vez que
a paçoca de fato para ele seria maior e mais consistente. Paçocão, de
sua parte, afirmava que a paçoca Amor seria a verdadeira paçoca enquanto
que aquela Boogie se referia como paçoca seria um doce de amendoim.
Para CB (já disse que se pronuncia “Ci Bi”, porra!) aquilo não fazia
sentido. Ele desde sempre se referiu ao suposto doce de amendoim como
paçoça e a suposta paçoca como paçoquinha. Uma confusão!
Brigaram
feio. Nas semanas seguintes levaram adiante sérias discussões sobre a
identidade da paçoca durante noites a fio enfrentando o frio
nova-iorquino bebericando
longnecks de
Colt 45 (
malt liquor vagabundo de menos de um dólar), doses de cachaça
Boazinha
contrabandeada por Paçocão para a terra dos federalistas, comendo
macarronadas com molhos de salsicha e fazendo exercícios sexuais nos
quais encontravam prazer nas mais variadas, divertidas e contorcidas
posições. No cool down do sexo eram picados durante o sono por
bed bugs
(percevejinhos gringos) que ficavam escondidos o dia todo em sua cama e
que na madrugada surgiam se fartando do sangue de ambos e deixando como
herança marcas vermelhas pelo corpo dos dois que eram coçadas com
vontade durante o dia todo.
CB e Paçocão tinham uma vida relativamente tranqüila na
Big Apple. Moravam num prédio velho e decadente do
Harlem lotado
de imigrantes em sua maioria dominicanos que falavam um espanhol
caribenho indecifrável que os dois apelidaram carinhosamente de
pacaiá pacaiá. O próprio zelador do prédio era dominicano e não falava absolutamente nada em inglês além do chamamento lugar comum
my friend.
Não havia banheiro dentro do apartamento e a cozinha, assim como o
banheiro, era coletiva, suja e cheio de ratos. Paçocão reclamava da
sujeira, da falta de Internet, TV e da água fria, pois o sistema de
aquecimento havia quebrado bem no início do outono e eles já encontravam
em pleno inverno. A falta de água quente obrigava o casal a tomar banho
na academia de ginástica que freqüentavam tentando manter seus
corpinhos em forma e na qual riam ao ver mulheres chocolate gordinhas
moradoras do
Harlem negro usando sacos preto de lixo cobrindo o
corpo durante o workout com a crença de que perderiam mais calorias
malhando daquela forma no mínimo peculiar.
O tédio da vida americana começara a tirar a alegria de Paçocão e ela se tornaria uma freqüentadora assídua da
The New York Public Library
passando dias e parte das noites debruçada sobre livros poeirentos e
grossos a respeito da paçoca e sua história. Lendo descobriu - diferente
do que achava - que a palavra paçoca não era um termo de origem
africana, mas sim indígena. Vinha do tupi
pa’soka, uma junção de
paba (terminar) com
soka (socar). O termo fazia referência à maneira como a comida que a
pasoka
indígena era produzida: uma mistura de carne assada desfiada com
farinha de milho preparada socando a carne e a farinha no pilão.
A
paçoca original de carne se aproxima em muito das comidas degustadas
por tropeiros devido ao seu alto valor calórico e nutritivo, ou seja, é
um prato que pequenas porções podem fornecer energia suficiente para
grandes caminhadas no interior da inóspita mata fechada além de seus
ingredientes serem facilmente transportados e de rápido preparo. Não é
coincidência ela ter se integrado a dieta dos bandeirantes que
desbravavam o interior e sertões brasileiros dizimando indígenas,
buscando riquezas minerais e recapturando negros fugidos. Historicamente
bandeirantes já são associados a origem indígena, sendo alguns em parte
caboclos ou mamelucos (descendentes de mistura de indígenas com
brancos) ou ainda cafuzos (descendentes de negros com indígenas), bem
diferente da pureza portuguesa que lhes é sempre atribuída pela
historiografia. Dizia-se que o infame herói paulista Domingos Jorge
Velho (1641-1703), bandeirante responsável pela destruição do Quilombo
dos Palmares com suas tropas mestiças, era um afamado comedor de paçoca
que se casou apenas em idade avançada tendo antes várias concubinas
indígenas. A mesma euforia por paçoca se diz a respeito de Anhanguera
(Diabo Velho), alcunha tupi pela qual era conhecido outro famoso
bandeirante paulista: Bartolomeu Bueno dos Santos (1672-1740). Paçocas e
bandeirantes, uma história complexa!
Até hoje há
cidades espalhadas por alguns estados brasileiros nas quais é possível
degustar a paçoça salgada. Em Minas Gerais temos a Festa Nacional da
Paçoca. Em Pilar do Sul, interior de São Paulo, acontece anualmente o
Festival da Paçoça e no Paraná a paçoca é parte do cardápio tradicional
do estado. Durante as festividades juninas no nordeste brasileiro, a
paçoca é um prato indispensável. Todavia, ninguém sabe explicar muito
bem como a paçoca ficou associada, em todo o imaginário popular, a um
delicioso doce tradicional produzido a partir de amendoim, farinha de
mandioca e açúcar. Há controvérsias. Alguns dizem que isso tem haver com
as mudanças alimentares da região onde a paçoca se originou, os estados
de São Paulo e Goiás. Entretanto, para sua decepção, Paçocão não
conseguia obter informações confiáveis sobre a origem da paçoca doce
contemporânea, a nossa deliciosa paçoquinha. Foi aí que um inquérito de
ordem identitária e existencial tomou a direção de seu interesse.
Sua
pesquisa focou, então, outros quitutes compatriotas. As
descobertas se amparavam em livros que moldaram a identidade nacional e
que traziam a culinária como um lugar privilegiado para se pensar a
elaboração de tradições, leia-se aqui
Açúcar: uma Sociologia do Doce (1932) e
Casa Grande & Senzala
(1933), ambos do saudoso Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre
(1900-1987). Cada doce, nesses e outros livros, tinha uma história
específica como a bananinha caramelizada, o doce de abóbora, o pé de
moleque, o brigadeiro, o quindim, a pamonha doce, a tapioca, o bolo de
rolo, o doce de buriti, o pudim de leite, o curau de milho, a rapadura, a
goiabada, o beijo de mulata, o papo de anjo, o bom-bocado, o manjar, a
cajuada, a cocada, o merengue, a baba de moça, o beijinho, o cajuzinho, a
canjica, o doce de caju, o doce de pequi, o melado de tacho, as baias
de café, o chuvisco, o pão de cuca, o doce de pinhão e a torta de maçã
"alemã". Ou seja, Paçocão descobriu que seus parentes, meio irmãos e
irmãs, eram muitos e variados. Mas todos eles tinham em comum o aspecto
docificado, atrativo possibilitado por uma especiaria: o açúcar.
Mais que isso. Numa leitura atenta de
Açúcar: uma Sociologia do Doce,
ela entendeu que Freyre olhava para essa iguaria como a responsável por
juntar culturas e povos através da culinária. Era como se o açúcar
fosse a liga que organiza a mistura fornecendo consistência e mantendo
os diferentes ingredientes juntos. E a paçoca doce? De onde viria? O que
significaria? Não importava muito como ela se elaborou, pensou, mas sim
o significado e a origem de seus componentes. Assim, buscou entender
cada um dos seus componentes em busca de pistas.
A
paçoca é feita de amendoim torrado e pilado com farinha de mandioca e
açúcar. Lendo livros de folclore, dicionários etimológicos e estudos
antropológicos ela descobriu que tanto o amendoim como a farinha tem sua
origem em tribos indígenas da América do Sul e faziam parte da dieta
alimentar desses grupos. O termo amendoim é originário do tupi-guarani
mãdu'bi (ou
mãdu'i)
significando "enterrado". Há algumas lendas indígenas sobre o
surgimento do amendoim. Uma delas afirma que havia um menino chamado
Doinmã que defecava amendoins numa panela com o auxílio da mãe. Um dia a
mãe saiu e deixou Doinmã aos cuidados do tio. O menino sentiu vontade
de defecar e pediu a panela ao tio que, não sabendo da história, mandou o
sobrinho fazer suas necessidades fora da casa. O garoto saiu e defecou
na panela. Horas depois o tio saiu da casa e, ao ver a panela,
fartou-se de amendoim. Minutos seguiriam até ele descobrir a origem do
amendoim e, extremamente irritado, surrou Doinmã até a morte. Com medo
da reação da irmã, enterrou o corpo do garoto próximo a um rio. Todos
lamentaram e choraram o sumiço de Doinmã, inclusive o tio. Passado algum
tempo, uma planta surgira próximo ao rio que a mãe de Doinmã se
banhava. Um dia, no momento em que a mãe se secava do banho, ela ouviu
um choro igual ao de seu filho. Notou que a lamúria vinha da planta. Ao
se aproximar dela e arrancar a mesma da terra, notou que nas raízes
estavam os amendoins de Doinmã.
Mandioca também tem origem tupi vindo do termo
mãdi'og,
mandi-ó ou
mani-oca
cujo significado é "casa de Mani". Mani é a deusa benfazeja dos
guaranis que se transforma em mani-oca. A lenda conta que ela seria a
neta de um chefe indígena. Ao saber que a filha estava grávida de um
rebento bastardo, o pai quis punir aquele que desonrara sua filha. A
filha negou ter tido relação com qualquer homem mesmo após sofrer
castigos impostos pelo pai. Decidido a matá-la, o pai foi impedido por
um homem branco que lhe apareceu em sonho afirmando que a filha era de
fato inocente não tendo tido relação com nenhum homem. Para surpresa da
tribo, nove meses depois uma criança extremamente branca nasceu. Foi
dado o nome de Mani à criança que andava e falava precocemente. Ao final
de um ano, sem aparentar nenhuma doença ou dor, Mani caiu morta. Foi
enterrada dentro de casa e a cova foi regada por determinado período
seguindo o costume da tribo. Ao cabo de certo tempo uma planta
desconhecida brotou, cresceu e deu frutos. Pássaros embriagaram-se ao
comer os frutos da planta, fato que aumentou a superstição dos
indígenas. Passado mais algum tempo, a terra fendeu-se. Ao cavar, os
indígenas julgaram reconhecer o corpo de Mani nas raízes da planta. Ao
comê-las eles aprenderam a usar a mandioca.
Não há
unanimidade sobre a origem do açúcar. Há histórias que falam de sua
existência há 6000 AC, mas estudos mais recentes apontam uma história
mais remota, algo em torno de 2000 anos. Sabe-se que o primeiro lugar a
cultivar cana de açúcar foi a Nova Guiné e de lá o cultivo se expandiu
para as Filipinas, Fuji e outras ilhas menores localizadas no sudoeste
do Oceano Pacífico. Os indianos, persas e chineses foram os primeiros a
processarem açúcar oriundo da cana e a iguaria chegou a Europa levada
por Alexandre Magno em suas campanhas empreendidas no Oriente. Séculos
depois o açúcar seria explorado pelo comércio de especiarias que se
estabeleceu no renascimento. Ele era visto como um produto sofisticado e
medicinal, vendido em boticários e acessível somente aos indivíduos com
alto poder aquisitivo. A produção de cana-de-açúcar foi trazida por
portugueses para o Brasil como meio de explorar a nova colônia e o
sistema de
plantation (monocultura + mão de obra escrava +
latifúndio) prevaleceu. O açúcar produzido no Brasil tinha aspecto
escuro assim como a pele dos escravos que trabalhavam na sua produção em
engenhos. Era depurado primeiro em blocos duros de cor caramelada ou
marrom: o açúcar mascavo. Depois vieram as formas de refinamento que
produziam os vários outros tipos de açúcar como o demerada, o cristal e o
refinado.
Sim, havia uma enorme história por trás da
paçoca doce. Não importava mais como ela deixara de ser salgada. Mas
importava que o açúcar houvesse cruzado sua trajetória, trazendo novas
perspectivas, unindo tradições e culturas, solidificando uniões. O
açúcar mascavo, de cor caramelizada e marrom, não o açúcar branco
refinado e ausente de cor e sentimento. Não é à toa que até hoje
associamos o amor a algo doce, suave e tranqüilo. A paixão é
arrebatadora, embriaga, tira a razão e nos faz cometer loucuras. Mas o
amor é calmo e para ser degustado aos poucos. Amor, a melhor definição
para o açúcar e a paçoca. Amor era o que se via nas lendas indígenas
referentes ao amendoim (amor de mãe e filho), da mandioca (o amor
proibido da indígena com o homem branco) e no açúcar (aquele que une
povos e culturas através da culinária, do sabor e de receitas). Mas o
açúcar, assim como o amor, tem a sua faceta sinistra. O açúcar também
poderia matar. Quantos homens e mulheres negros morreram no período da
escravidão vítimas do trabalho duro, brutal e desumano do plantio da
cana e da produção de açúcar nos engenhos? Alguns foram deliberadamente
assassinados. E o que falar dos indígenas dizimados pelos europeus para
que em suas terras a cana pudesse ser cultivada? E mais
contemporaneamente, já ouviu falar da história dos três brancos
assassinos? Sal, trigo e... açúcar!
Paçocão, após
semanas enfiadas dia e noite na biblioteca, saiu do prédio localizado na
Rua 42 da ilha de Manhattan totalmente atordoada aquela noite. Tantas
histórias, idéias e tradições estavam por trás da sua trajetória.
Passando pela
Times Square ela notou uma loja enorme da
M&Ms.
Sentiu pena dos turistas que enchiam suas sacolas de compras com o
produto gringo ao pensar no sabor de seus doces locais. Não, o
M&Ms
não teria nem um terço da história dessa singela iguaria nacional
chamada paçoca e que até hoje é vendida em botecos, bares, pé sujos,
mercearias, supermercados, camelôs e unindo amantes através do simples
gesto de degustar uma paçoca juntos.
Seguiu caminhando até a estação
Times Square e dentro da mesma andou por um longo e entediante corredor branco alcançando o
Port Authority. De lá tomou o trem A em direção ao
Harlem.
Sua cabeça girava entre pensamentos. Ao sair do metrô na estação da Rua
125 enfrentou quatro quarteirões debaixo de forte neve se deparando com
faces negras em seu caminho até chegar ao prédio velho da Rua 123,
entre as avenidas
Amsterdam e
Broadway, onde morava dividindo o espaço com ratos, baratas, bed bugs, imigrantes ilegais e sem água quente.
Ao
subir os degraus da entrada do prédio, escorregou no gelo e caiu de
bunda na neve branca que cobria toda a calçada e que os zeladores pacaiá
pacaiá não haviam tirado aquele dia. Levantou se limpando da neve
molhada, xingando e amaldiçoando os velhos coitados. Ao entrar no prédio
e foi recebida por uma agradável massa de ar quente. Subiu as escadas
sujas e chegando ao seu andar notou que a sujeira aumentava. Abriu a
porta do corredor e viu seu homem CB cozinhando. Ao notar sua presença,
ele respondeu com um sorriso sem graça. Cardápio: macarrão com salsicha,
duas doses de
Boazinha para abrir o apetite e duas
Colt 45 de US$ 0.90 cada. O computador tocava a trilha sonora da noite:
Love Supreme,
John Coltrane. Sobremesa: a última paçoca Amor do pacote contrabandeado
por Paçocão para a gringa, a ser dividida por dois. Depois de jantar,
discutiram para ver quem comeria a paçoca sozinho ou como a dividiriam,
enquanto CB preparava um café. Numa ida ao banheiro de Paçocão, CB (“Ci
Bi”, caralho!), numa atitude egoísta, enfiou todo o doce na boca e comeu
extasiado. Brigaram. Não treparam. Na noite seguinte Paçocão tomou um
avião de volta às terras tupiniquins e seus meios-irmãos e irmãs doces.
Numa tentativa de reconciliação, o homem chocolate até hoje envia
enormes caixas de
M&Ms da loja da
Times Square para
Paçocão que os vende fazendo fortuna. A cada novo pacote que chega pelo
correio ela olha desconsolada, suspira e diz: “Se ele enviasse ao menos
uma paçoca
Amor...”